terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Túnel do Tempo


...E lá estava o menino,
sozinho, sentado na grama,
lançando ao seu redor
barquinhos de papel
sem saber que lançava
garrafas com mensagens cifradas
ao homem que ainda seria.


Texto e fotografia por Eduardo Trindade. Os barquinhos são parte de um presente oferecido pela Cris, amiga querida que tem o dom de transformar gestos em poesia.
E que em 2010 saibamos lançar mensagens bonitas e ler aquelas que nos trouxer o mar...

sábado, 19 de dezembro de 2009

"Não te quero mais"

Pratiquei durante dias,
horas a fio
em frente ao espelho
para não titubear
quando chegasse o momento:

nós dois
cara a cara
e, em vez da frase ensaiada,
sucumbo novamente
aos teus beijos magnéticos.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Nós e as palavras

Como você costuma falar?
Ou como tu costumas falar?
A língua, bem sabemos, é um elemento importante da afirmação cultural de um povo. E, visto que a cultura nunca é algo homogêneo, mas sim algo vivo e cambiante com o tempo e o lugar, também não devemos esperar que a língua seja sempre a mesma. Não preciso sequer falar das diferenças entre o português brasileiro e o português de Portugal (ou da África, da Índia, da China): os exemplos estão muito mais próximos de nós. Sim, temos marcantes diferenças entre estados e inclusive dentro do mesmo estado. Temos mais: cada indivíduo tem a sua vivência e o seu ponto de vista, que se manifestam, naturalmente, no seu linguajar: o sotaque, as gírias, a escolha dos vocábulos mais adequados a cada situação.
Nem mesmo um único indivíduo é homogêneo: não é verdade que assumimos tons e palavras diferentes dependendo do interlocutor e do meio? Ou será que alguém aí usa exatamente a mesma linguagem para falar tanto com o chefe quanto com a esposa ou namorada, tanto ao telefone quanto por escrito? (E nem preciso citar os operadores de telemárquetim, que são um caso à parte.)
Cada uma dessas nuances da linguagem se presta a uma mensagem que desejamos passar – ora mais formal, ora mais descontraída, ora mais ou menos íntima.
E a quem cabe julgar se a linguagem é ou não adequada? Sendo um sujeito pacifista, não defendo a prisão perpétua ou a cadeira elétrica para quem tem desleixo com a língua, nem mesmo para os operadores de telemárquetim que abusam do gerúndio. Mas o julgamento, em cada situação, é inerente à sociedade, tão natural quanto o julgamento (ainda que implícito) de quem se veste de maneira inadequada ou quem descuida da etiqueta à mesa. Não digo que tal seja ou não adequado; o fato é que acontece o tempo todo e seria tolice ignorá-lo.
A comparação é interessante: assim como costumamos nos vestir de modo diferente para irmos à praia ou a uma festa, também há palavras que são adequadas num meio e não em outro. Alguém que conversasse comigo com apurado rigor gramatical causaria estranheza. Mas um texto com pretensões literárias onde ocorressem sucessivos deslizes ortográficos também soaria mal.
Notem que, num caso e noutro, a linguagem pode ser subvertida para provocar uma reação do interlocutor: não foi à toa que escrevi telemárquetim no lugar de telemarketing. Mas assumo toda a responsabilidade pelo neologismo deliberado.
Ao me mudar de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, ficaram escancaradas algumas diferenças de linguagem. Sobretudo na escolha dos pronomes – meu interlocutor é tu, enquanto que a maioria à minha volta conversa com você. Alguns conterrâneos meus, na mesma situação, acabaram adotando a terceira pessoa. Eu, talvez por birra, aferrei-me ainda mais ao meu singelo tu.
O que não deixa de causar reações, das quais procuro ter consciência (como no caso de telemárquetim). Acontece que, recentemente, um de meus contos foi premiado em um concurso e tive a satisfação de vê-lo integrando uma antologia. Pois, abrindo o livro, descobri que o revisor tinha alterado o texto sem me consultar, transladando-o da segunda pessoa (tu, teu) à terceira (você, seu). Se fosse apenas uma questão de rigor gramatical, eu não faria tanta questão (ambas as alternativas são igualmente corretas, desde que internamente coerentes). Mas a escolha dos pronomes não é aleatória: o emprego de uma conjugação menos comum (tu vais, tu queres), muito mais que uma afirmação regional, é um recurso que eu gosto de usar para criar um clima de fábula, de sutil desligamento da realidade, como era o caso. O que seria de nós se todos os nossos sonhos tivessem de ser, forçosamente, sonhados com um sotaque padrão de telenovela?

texto e fotografia por Eduardo Trindade

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Trapezista

Sentia a atração do abismo.
Dedicado ao trapézio,
dispensava redes de segurança.
Seu mundo era um mundo,
seu sonho era um sonho
de glória e de aplausos.
Vivia de aspirar o vento
de suor frio e respirações suspensas.
Suspendia-se no ar.
Sustentava-se no infinito
de uma fantasia particular
com ares de bailado.
Ousava. Não sabia o que arriscava
até torcer o pescoço
(não havia redes de segurança)
atrás de um rabo-de-saia.



Lembrete: sexta-feira tem mais um texto meu nos Autores S/A.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Meninos da Pátria

Meninos sem rosto
nas sinaleiras
pedindo trocados,
agitando flanelas
como estandartes imundos,
meninos invisíveis
de mundos subterrâneos
inventando com laranjas
artes de circo
que não alimentarão
suas bocas famintas,
meninos do futuro
da pátria amada,
como esperar
a revolução silenciosa
se o prato é pouco
e a pátria, quase nada?



Lembrete: amanhã (sexta-feira) eu me despeço do Blog de 7 Cabeças aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O fim das coisas

Quando estou no chuveiro, volta e meia eu me deparo com um dilema: o sabonete, ao ser usado, vai diminuindo de tamanho, diminuindo, diminuindo, até que usá-lo se torna impraticável, embora ele teime em não desaparecer por completo. Daí a dúvida: até que ponto ainda é valido usar o sabonete? Questão aparentemente inócua, ainda mais que ela vem num momento em que não temos testemunhas, mas não por isso mais fácil de responder. Quando é, afinal, que acaba o sabonete? Quem já usou o sabonete até o final? E não me venham com a tática de grudar o restinho do sabonete anterior naquele sabonete novinho em folha, recém tirado da embalagem. Isso eu também faço, mas sempre me soa como uma leve trapaça...
Na escola, havia uma outra situação parecida: era quando a borracha, de tanto ser usada, ia diminuindo de tamanho até restar apenas um cotoco. Mas quando é que acabava a borracha? Tecnicamente, ela não acabava nunca, pois sempre sobrava um pequeno pedaço. Porém, havia um momento em que este pedaço, de tão pequeno, tornava-se impossível de ser manuseado. O que fazer, então, com aquele cotoco?
Por inércia, eu não fazia nada, e o resto de borracha continuava rolando em meu estojo e sobre a mesa. Um dia, um professor mais irônico me perguntou:
— É de estimação?
Talvez fosse e eu nunca tivesse me dado conta.
Por outro lado, há aquelas coisas que efetivamente acabam. A caneta bic, por exemplo. Bem, talvez não seja um bom exemplo: dizem as teorias de conspiração que as canetas bic misteriosamente não terminam nunca. Alguém aí já chegou ao fim de uma caneta bic? Sinto desapontar os conspiracionistas: as minhas canetas acabavam, sim. O que havia de misterioso era acompanhar a evolução do nível de tinta no interior do tubo, como um termômetro que parecesse imóvel mas, sorrateiramente, estava diminuindo semana após semana. Até chegar ao fim.
Voltando aos itens de higiene pessoal, eu devo ter alguma implicância com perfumes. Pois um frasco de perfume, na minha mão, dura anos. Não que eu seja econômico demais, pelo contrário. Simplesmente deve estar acima do meu entendimento o mecanismo que faz com que aquele minúsculo frasco, que eu uso todo dia, dure tanto tempo — até um ponto em que, de tão velho o perfume, a sua fragrância guarda quase nenhuma semelhança com a fragrância original... Nesta linha, um amigo meu ficava francamente chateado com as loções pós-barba que, segundo ele, duravam tempo demais: aquele frasco cheio do qual só usamos poucas gotas por dia representava, inegavelmente, um estoque desnecessário de produto. Nas palavras dele: dinheiro parado...
E as coisas que, embora teoricamente feitas para durar, sabemos ter os dias contados? Aqueles radinhos de pilha comprados na frente do estádio que raramente duravam mais que um único jogo de futebol. Os famosos guarda-chuvas de camelô que, quando não são abandonados pelo dono distraído em algum local incerto e não sabido, terminam seus dias escangalhados pelo uso. E que têm a particularidade de só dar a perceber o quanto é irremediável o estrago das varetas ou da costura no meio do aperto, ou seja, da tempestade. Antes assim. Encharcados ou não, todos sabemos que o fim de um guarda-chuva velho é o lixo. Mas ainda não me responderam: quando é que acaba uma borracha ou um sabonete?


Lembrete: amanhã, sexta-feira, tem publicação minha no Autores S/A e no Blog de 7 Cabeças.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Entre os Autores S/A

Autores S/A é um blogue que eu acompanho há algum tempo. Além da qualidade literária, um ponto que me atrai nele é um clima, como vou dizer, de sutil informalidade. Não que os textos e o próprio leiaute do blogue não sejam bem cuidados, nada disso. O que acontece é que os textos não são pedantes, e os comentários muito menos. Os comentários, aí é que está o ponto: bons comentários contribuem demais para um bom blogue, e os de lá são tão deliciosos quanto as próprias postagens. Culpa dos Autores que são, não tenho dúvida, excelente companhia.
Pois vejam só: fui convidado a colaborar com os Autores S/A! Fiquei feliz e honrado com o convite, e nem poderia ser diferente. Pois então está combinado: procurem-me lá sempre às sextas-feiras, espero não decepcioná-los. Começo hoje, com um pequeno conto.

Ah, e hoje também tem Blog de 7 Cabeças. Vejo vocês por lá!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Abbey Road


Um amigo telefonou perguntando se eu queria ganhar a discografia completa dos Beatles. Perguntei como. Ele respondeu que bastava tirar uma foto.
Como assim?
Tratava-se de um concurso, a fotografia que aludisse de forma mais criativa à capa do Abbey Road ganharia os tais discos. E meu amigo tinha uma ideia infalível.
Bem, os planos dificilmente são à prova de falhas, tanto é que não vencemos o concurso. Mas a ideia era mesmo boa e a fotografia, modéstia à parte, ficou muito criativa, para dizer o mínimo. O que acham?

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Entre as sete cabeças

Preconceito mitológico: tivesse sete vidas, seria um gato; mas, com sete cabeças, chamavam-lhe monstro.
Durante o mês de novembro, sempre às sextas-feiras, estarei escrevendo no Blog de 7 Cabeças. O convite partiu da Marina, que eu terei a honra e a responsabilidade de substituir temporariamente.
Acompanho o blog há algum tempo e já fiz uma "participação especial" com a frase acima, que foi a vencedora do concurso que as "7 cabeças" organizaram no mês de aniversário. Agora estarei lá para valer, ainda que como interino. Então... vamos ao poema de hoje aqui.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A primeira viagem

Minha mãe tinha uma coleção de selos.
Ainda criança, eu adorava me sentar e me desligar do tempo, simplesmente vendo as mil coisas contidas naqueles pequeninos pedaços de papel. A princípio, o que me atraía eram as cores dos selos que tinham como motivo animais, a natureza em geral, obras de arte, meus ídolos ou simplesmente figuras do imaginário infantil. Os personagens de Monteiro Lobato, o milésimo gol de Pelé... Ao mesmo tempo, eu tinha uma admiração respeitosa pela idade de alguns selos do começo daquele século. Parecia incrível para mim ter contato com algo tão antigo.
Logo passei a me aventurar no álbum que havia repleto de selos de várias dezenas de países. Era um desafio: tantas línguas, tantas diferenças de estilo que eu sequer sabia a que se deviam... Aquilo, sim, me fascinou. Eu olhava para os diferentes alfabetos e tentava adivinhar as misteriosas inscrições que designavam selos sovitéticos, indianos, japoneses. Mesmo quando se tratava do alfabeto que eu julgava conhecer, que diabos estava escrito naqueles selos finlandeses e alemães? Minha curiosidade se aguçava cada vez mais, assim como minha vontade de pesquisar e descobrir. Ah, que alegria foi quando consegui associar com segurança aquelas “cobrinhas” do alfabeto devanagari à Índia! Quando descobri a diferença entre aqueles selos chineses e os japoneses!
Eu era um pequeno personagem de Júlio Verne. A volta ao mundo em incontáveis selos.
Os selos que minha mãe guardava foram minha primeira grande viagem.
Um dia, eu descobri que a coleção ia somente até o ano de meu nascimento. Nem seria de se espantar: naquele ano, a rotina da casa deve ter sofrido uma reviravolta com a minha chegada, ou seja, a chegada do primeiro filho. Bem, confesso que poderia ter me sentido ligeiramente culpado com essa descoberta: quantas viagens deixaram de acontecer por minha conta?
Depois, eu entendi: aquele ano foi, na verdade, o início de novas viagens.
E cada nova viagem tem sempre aquele gosto de descoberta; o espírito de Júlio Verne, à sua maneira, continua forte até hoje.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ausência

A escova de dentes
dorme solitária
sobre a pia do banheiro.

Ninguém mais reclama
do tubo premido ao meio.

O espelho se cala.


Poema que recebeu menção honrosa no Concurso Nacional Helena Kolody 2009.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Os espaciais

Estes que procuram metodicamente, loucamente, desesperadamente provar que não estamos sós no universo... Admiro a sua persistência e compartilho a sua curiosidade. Só duvido um pouco da sua convicção de que a existência de uma outra raça mudaria a nossa vida.
Qualquer dia, ainda vão descobrir, nalguma galáxia improvável, uma grande colônia de extraterrestres: não humanoides, mas insetos. E ficarão perplexos ao se depararem com a obstinada indiferença daquelas outras formigas interplanetárias, eternamente ocupadas consigo mesmas, às nossas mensagens em radiofrequência.

por Eduardo Trindade

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Vento no rosto

Mão de criança segurando o balão,
lindo balão, lindo sorriso
com que levas teu colorido globo.
Flanando, passeando, sonhando,
cada vez mais longe, cada vez mais alto...
O balão se soltou, menino!
E lá vai, pequenino,
no imenso céu que o abraça.
Mão de criança na minha:
vamos de mãos dadas, menino,
até que, numa esquina,
eu talvez piscarei, de repente,
e te soltarás, voando, voando
no imenso mundo que tens pela frente.



versos e pintura por Eduardo Trindade

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Mapas

A humanidade pode ser dividida em dois grupos: os que, lendo um mapa, preferem deixar o norte no topo e os que gostam de girar o mapa para alinhá-lo com a posição real dos pontos cardeais.
Pesquisadores sérios já se propuseram a explicar esta diferença de comportamento. Dizem que, em geral, são as mulheres que se sentem mais desconfortáveis ao ler um mapa e as que mais fazem questão de girá-lo até alinhar o norte do papel com o norte que têm à sua frente. Os homens, neste sentido, teriam melhor senso de orientação espacial (embora, por outro lado, perderiam para as mulheres na orientação em espaços fechados, quando procuram algo dentro de casa, por exemplo).
De maneira geral, eu me encaixo bem nesta média. Gosto de mapas, e não preciso girá-los de ponta-cabeça quando procuro uma rua. Mais do que gostar de mapas, gosto de colocar meu senso de orientação à prova quando chego exploro uma cidade nova. Como viajante, um dos troféus particulares que guardo foi ter desembarcado em Pequim e, munido apenas de um mapa (em mandarim, naturalmente), ter achado o caminho da pousada sem titubear nem precisar pedir informações – mais do que isso, no trajeto de metrô, conheci um chinês do interior e ajudei-o a achar seu próprio caminho. É verdade que também há situações em que não sou tão eficiente; mas, mesmo assim, não me preocupo, pois perder-se pode ser um dos grandes prazeres de uma viagem. Tanto que me incomodam um pouco as pessoas que fazem sempre questão de saber exatamente para onde estão indo.
Tudo somado, ainda não conclui se tenho ou não um bom grau de orientação – e de atenção. Eu já errei até mesmo o caminho de casa: assim que me mudei, ia passando em frente ao meu prédio sem dar por ele, e teria seguido adiante se outra pessoa não tivesse me alertado. Também já arranquei os cabelos, dentro de casa, procurando desesperadamente os óculos que estavam na ponta do nariz. Noutra ocasião, levei um bom tempo até me dar conta de que o que estava fazendo meus olhos embaçarem era o fato de que eu, esquecido de que já havia posto lentes de contato, tentava colocar os óculos por cima delas. Em compensação, costumo ser uma pessoa bastante confiável quando me pedem informação na rua, mesmo numa cidade que não seja a minha.
E quando não conheço o caminho? Recorro aos mapas, sempre que possível, e isto tem sido cada vez mais fácil com a popularização de serviços como o Google Earth. Outro dia, quis pesquisar a localização exata de determinada rua do bairro carioca de Botafogo. O programa me mostrou a rua, entre várias das ruas principais do bairro que eu conheço bem, porém a disposição do mapa era estranhamente incompreensível para mim. Após uns minutos quebrando a cabeça, descobri que aquele não era o mapa que eu buscava: no município vizinho de Nova Iguaçu também há um bairro chamado Botafogo e, mais do que isso, as ruas de lá têm o mesmo nome das ruas de cá. Uma homenagem? Não sei. Mas imagino que carteiros e entregadores devam sofrer com a inusitada coincidência e que os enganos não devam ser incomuns. Pudera, se um desavisado procurar seu caminho no bairro errado e homônimo, não adiantará virar e revirar o mapa...

crônica e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

De passagem

Tanta gente
nestas composições de metrô,
nestas rodoviárias do interior,
nestes aeroportos de conexão,
tanta gente, meu Deus,
que eu nunca voltarei a ver.

Um senhor de terno preocupado com a hora,
uma mulher de circo gritando com o filho,
um velhinho mirrado com medo de viajar,
uma moça aérea que lê um livro de poesia...

Tanta gente, meu Deus!
Se eu pudesse saber
o que pensava a moça de poesia...
O que terá achado do livro,
o que terá achado de mim?
Mas nossos olhares se cruzaram
e desconversaram
para nunca mais.

versos e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Para começar o dia

Sempre vou ao trabalho de ônibus. É um trajeto de pouco menos de meia hora, que costumo fazer lendo ou dormindo: na maioria das vezes, durmo. Habituei-me a despertar quando o ônibus se aproxima da última curva antes da parada. Um automatismo do tipo que a rotina costuma criar. Não reclamo: é bom ter estes minutos a mais de sono durante a viagem.
Hoje de manhã. O ônibus se aproxima da tal curva e eu estou abrindo preguiçosamente os olhos. Há uma sinaleira, um pouco de trânsito, e o ônibus para, à espera.
Outro ônibus para ao lado do meu.
É quando eu reparo, através da janela, uma criança que olha para cá. Tem uma das mãos apoiada no vidro do seu ônibus. Esta mão me faz um aceno tímido, este menino me olha nos olhos com uma pureza que eu não sei descrever. Sei que definitivamente desperto. E assim o menino ganha um sorriso meu. Natural como os gestos que não esperamos. E espontaneamente minha mão responde ao aceno.
Então me dou conta de que o ônibus ao lado está repleto de crianças pequenas de uma escola pública. Curiosas, disputam espaço nas janelas. São rostos variados: alguns sonolentos, outros distraídos, outros ainda surpreendentemente atentos. E tantos sorrisos. Eu também estou sorrindo, olho para cada um destes rostos e me retribuem com um brilho de alegria! Agora são mãozinhas próximas à janela, todas acenando para cá!
A sinaleira já está verde, meu ônibus começou a se mover e vai deixando o outro para trás. Anda devagar, e eu vejo as janelas passarem em câmera-lenta. Meninos e meninas, cada qual com uma história. Não sei o que esperam do dia mas parece que, naquele instante, não desejam mais que um sorriso e um aceno deste homem aqui do outro lado, homem que parece fazer parte de outro mundo, mundo dos adultos. Eu.
Já nossos caminhos se separam, estou chegando ao trabalho. Meu último olhar capta o olhar de uma menininha desconfiada. Gosto de imaginá-la com uma curiosidade disfarçada em timidez. Hesitamos um instante, então ela começa a tamborilar devagar com os dedos da mão na janela, é sua forma de acenar para mim. Repito o gesto com a mão ondulando no ar. É bom-dia, é aceno, é despedida. E é a maneira que encontro de agarrar aquele instante para ainda me lembrar dele quando já forem outras as ondas trazidas pelo vento.

crônica e fotografia por Eduardo Trindade

domingo, 20 de setembro de 2009

Há uma saudade

Há uma saudade que enternece e outra que entristece,
uma que convida à ação e outra que nos deixa sem ação.

Que sentido temos dado às nossas ausências?



Eduardo Trindade

sábado, 12 de setembro de 2009

Bom dia

Raia enfim
com teus olhos
de poesia.

Desabotoa
teu sorriso
de marfim.

Que belo o dia
quando amanheces
em mim.




por Eduardo Trindade

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Desenho na calçada

Risco a calçada com um caco de tijolo.
Um sol, uma casa... Um menino
emerge, por encanto, do chão.
Sorri, sorrio. E dançamos juntos
de mãos dadas em frente à casa
onde eu costumava brincar.
O sol se faz luz e raios
enquanto dura o dia.
A tarde é grande aos olhos de criança.
Que retêm o tempo. As sombras se alongam,
enfim, então vem a noite
e com ela uma nuvem molhada
restitui o menino à calçada,
os rabiscos ao nada,
a compostura ao homem feito
e parto, intimamente radiante
como um sol cor de tijolo.

versos e imagem por Eduardo Trindade

sábado, 29 de agosto de 2009

Quando os livros vão para o lixo

Saí de casa para retirar o lixo, como de hábito. Caminhei alguns metros e depositei o saco junto a outros, que seriam recolhidos pelo lixeiro, como de hábito. E, como de hábito, às vezes reparo em coisas simples que estão à minha volta.
Foi assim que percebi que, entre os tantos sacos de lixo depositados pelos meus vizinhos, havia um pequeno volume. Um livro. Sartre.
Sartre, o famoso filósofo e escritor francês, que venceu e recusou um Prêmio Nobel, dormia junto com o lixo a alguns passos de minha casa.
Verdade que não se tratava da sua faceta mais notória, que lhe deu garantiu o reconhecimento como intelectual e ativista, mas de uma obra póstuma relativamente obscura. Ainda assim, era um livro. No lixo.
O que eu fiz, penalizado com aquele destino inglório, foi obedecer a um impulso: resgatei o livro e levei-o para casa. Para minha sorte, o volume estava coberto por uma espécie de capa que o protegia da imundície. Um volume usado e manuseado, sim, mas ileso.
O livro, como qualquer outro, permitia diferentes leituras. Neste caso, não tenho dúvida de que a principal delas é: o que fazia um livro no meio do lixo? Quem o teria largado ali? Embora estivesse protegido pela tal capa, não acredito que a intenção fosse colocá-lo à disposição de outro leitor, afinal uma montanha de lixo é uma biblioteca bastante improvável. Não. Eu me espantei foi com o simbolismo da cena. É preciso coragem para lançar livros ao lixo neste mundo tão carente deles. Ou então despeito: os filósofos, como se sabe, não têm fama de simpáticos. Pelo contrário, costumam ser densos, pesados e carrancudos. Ao lixo, então, com eles! Melhor seria talvez se fizessem uma fogueira: não haveria vestígios do sumiço nem intrometidos como eu dispostos a resgatar livros da lixeira.

Por Eduardo Trindade.
Crônica publicada também no jornal O Globo de 31/8/09.

domingo, 23 de agosto de 2009

Quando


Carolina
todo dia
adia
o plano
de viver
o dia-a-dia.



por Eduardo Trindade,

lembrando, é claro, Chico Buarque:
O tempo passou na janela
e só Carolina não viu

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Carta fora do baralho


Azar no jogo, sorte no amor.

Quem dera!

Onde posso trocar
minha dama de copas
por uma moça de carne e osso?












segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Do teu sangue

Em memória de R.S.B.

Teu sangue não lavou a alma de ninguém.
Em vão buscaste uma morte heroica,
não estavas num filme nem numa batalha.
Voaste sem asas, sem sonho, sem nada.
Voando não deixarias pegadas,
mas o rubro de teus sentimentos a escoar
lentamente para os olhos de tua mãe.
Olhos, nunca imaginaríamos, olhos
fadados a colher tuas pegadas brutas
e a banhar docemente, desesperadamente
teu corpo jacente, ferido, maltratado,
enfim imóvel, enfim inerte, enfim liberto
num banho mais de lágrimas que de sangue.
Deixaste mais que sangue, deixaste a vida
a escoar nas lágrimas sem fim de tua mãe.

por Eduardo Trindade,
num dia em que a nota triste se faz necessária

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Face

Vês teu retrato
na água do lago?
Tantas rugas,
serão elas fruto
do sol que te toca
dia após dia
ou das ondas que turvam
vento após vento
o lago,
o sorriso
e o próprio sol?


fotografia e versos por Eduardo Trindade

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Máscara

Despido o nariz vermelho,
lavado o rosto envelhecido,
assustou-se no espelho:

um palhaço
que não sabia sorrir
...................sem a máscara.











por Eduardo Trindade

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Leitura

por Eduardo Trindade

Pedro abriu o livro na página indicada pela professora e iniciou a leitura. Sua voz límpida enchia a sala à medida que corria os olhos pelas linhas. Sua oratória e a segurança com que escandia as palavras enchiam de gosto a professora, que não lhe poupava elogios. Por isto mesmo, era escolhido com frequência para as leituras na escola.
Em casa, diziam que tinha facilidade com os livros. Gostava de lê-los. Mais que isto, devorava-os. Livros de todos os tipos, a começar pelos que lhe compravam os pais, e em seguida os tantos que encontrava na biblioteca. Não chegava a ser um menino recluso, mas era inegável que, muitas vezes, preferia a companhia de um livro à companhia dos colegas que viviam na rua a correr e a jogar bola.
Lembrava-se de, ainda pequeno, ser acalentado, na cama, pela voz da mãe que lia para ele inúmeros contos infantis. Logo que pôde, quis ele mesmo decifrar as histórias que ficavam encerradas naquelas páginas de papel. Descoberto o enigma dos símbolos do alfabeto, mostrava a todo mundo, orgulhoso, a sua familiaridade com a leitura. Municiou-se dos mesmos livros que a mãe costumava ler para ele, passou a se instalar ao pé da irmãzinha pequena e lia ele mesmo as histórias para a menina. Ela ficava encantada, ele mais ainda.
Naquele dia, conforme a professora havia pedido, estava lendo um texto em voz alta para toda a turma com a sua confiança habitual. De repente, engasgou-se com uma palavra nova. Uma palavra com a qual nunca havia se deparado, inescrutável, estava ali a escarnecer dele, amedrontando-o, deixando-o lívido. Pedro tremia, sem conseguir vencer aquela misteriosa palavra:
— ...ines... ines... cru... tá... — gaguejava e, tomado de uma súbita e poderosa insegurança, voltava ao início: — ines... ines...
Até que a professora, vendo que o menino estava paralisado, e que começavam a surgir algumas risadinhas entre os demais alunos, ajudou-o:
— Inescrutável.
Tudo isto, que durou apenas um instante, vocês irão concordar comigo que para o Pedro foi uma longa eternidade. Tanto que ele ainda demorou um pouco para voltar a si e continuar a leitura, livre daquela palavra-pedra-no-caminho, mas sentindo-se intimamente humilhado. Não duvidem de que o restante da aula foi um tormento para o menino, que suspirou aliviado ao ouvir o toque para o recreio.
E o que fez Pedro? Saiu da sala para o pátio da escola com todos os seus colegas, mas era como se saísse sozinho. Como se fugisse. Sentou-se a um canto, num dos degraus de uma escada que não levava a lugar algum, apoiou um livro sobre os joelhos e pôs-se a ler. O rosto metido entre as páginas. Mergulhava numa leitura para esquecer de outra.
E foi como se mergulhasse numa grande espiral. Já não ouvia os gritos das crianças correndo pelo pátio. Tudo era apenas um zumbido indefinido. O vento soprava. Percebeu que o vento vinha das páginas do livro, que tremiam: as folhas estavam correndo sozinhas, e rapidamente, o livro batia as asas, queria voar! Mas que coisa! O menino não acreditou, acercou-se mais, o zumbido ficou mais intenso. Fechou os olhos para ouvir melhor, e foi como se os abrisse mais ainda. Agarrado ao livro, o menino voava. Sentia que passavam por si campos, mares, cidades. Sabia que ali viviam poetas, piratas, doutores. Quantas vidas se esconderiam nas páginas do livro? Concentrou-se mais. E lá estava o zumbido, crescendo, crescendo, até se apresentar a Pedro. Que, então, forcejou para desvendá-lo:
— Ines... inescrutável!
No mesmo instante, sentiu que uma mão tocava seu ombro, e foi como se o puxassem para fora do livro. O zumbido sumiu, o vento se aquietou, o coração parou, Pedro pestanejou e viu uma menina de grandes olhos verdes olhando para si. Ela falou:
— Oi... Tu és o Pedro, não? Ouvi falar de ti. Posso me sentar? — E, como ele aquiescesse em silêncio, a menina se aproximou. E completou: — Eu sou a Inês.
Pedro baixou os olhos e sentiu que os dela acompanhavam os seus. Soltou o livro. Já não precisava dele: a história que leria, enquanto durasse o encanto, era a sua própria.


Aproveito para agradecer a gentileza da Maggie, que escreveu uma belíssima resenha sobre o meu livro: As Valsas Invisíveis.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Liberdade

Quero escrever o que nunca foi lido,
cantar o que ninguém gritou
e amar como não se sentiu jamais.

É só uma estrada,
assim diz o mapa, o guia, o costume.
Mas por onde andam os pés
desavisados
que ousaram trilhar atalhos?

Não quero ser avisado.
Deixem-me descobrir sozinho
o gosto da praia que eu escolher.

E o beijo que eu provar
da namorada que nem ouso querer,
esse eu não contarei.

(Precisarei de um mistério
quando o poema terminar.)

versos e fotografia de Eduardo Trindade

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Do sentido da vida


Entre a expectativa
de ser semente
para poder brotar
e o êxtase
de ser fruto
e saber semear
escolheu somente
a beleza transitória
de uma rosa branca.








versos e imagem por Eduardo Trindade

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Saber esperar

Hoje em dia, é difícil encontrar alguém que não tenha uma câmera fotográfica. Ou mais de uma. A fotografia está tão difundida que já não se pode mais falar sequer “as pessoas fotografam até com o telefone”; o mais adequado é “as pessoas fotografam pelo menos com o telefone”. E essa popularização da fotografia, que tem os seus méritos, às vezes assusta quando nos damos conta dela. Mais que um susto, porém, existe uma mudança de comportamento silenciosa correndo junto com tudo isso.
O registro de uma imagem, há poucos anos, começava com o ato de colocar o filme na máquina fotográfica. Ou melhor: começava quando se escolhia o filme, o que podia ser um dilema complicado. Eu, por exemplo, sou fascinado por fotografia em preto-e-branco. E para fazer uma fotografia assim era preciso colocar um filme especifico na máquina, o que significava que as próximas 36 imagens sairiam em preto-e-branco. Equipado para fotografar apenas preto-e-branco, eu ficava torcendo para que não surgisse nada muito colorido na minha frente...
Mas a mudança mais significativa foi, claro, quanto à revelação das imagens. As crianças, hoje, não devem sequer saber o que é revelar um filme fotográfico. No entanto, após tirar uma foto nós não tínhamos como saber se ela havia ficado boa. A iluminação, o enquadramento, o resultado só seria visto dia ou dias depois. E nada de retocar digitalmente a imagem para corrigir os defeitos. A foto é o que é.
A espera. Horas ou dias até se poder ver o resultado de uma foto. Quem nem sempre agradava pela imagem em si, é verdade, mas que se confundia com um outro valor muito significativo: a fotografia acompanhava a memória. Buscar as fotos recém reveladas era uma viagem que se prolongava além das férias, um fim-de-semana que se prolongava até segunda ou terça-feira. Quando começava a bater a saudade daquela pessoa ou daquele lugar, nesta hora é que a revelação das fotos ficava pronta, finalmente nos sentávamos para olhar tudo. Com os olhos cheios de lembranças.
Não temos mais isso. O ritual da foto se concentrou completamente no instante do clique e quase não há mistério a ser revelado posteriormente. E assim vamos desaprendendo a esperar.
Na escrita, um fenômeno parecido. Sou dos que ainda escrevem cartas. Adoro. Todo o lento ritual, a escolha do papel, o cuidado com a letra, a incorporação de algum desenho, cartão ou dobradura ao envelope. Um pequeno presente que se constrói. E, claro, a espera. Não é fascinante imaginar o instante em que a carta chega, trazendo mensagens, texturas, aromas? Como um livro novo, personalizado, gostoso de se folhear. Não nego a importância do e-mail. É minha ferramenta de trabalho e meu principal meio de comunicação com as pessoas que moram longe. É rápido e prático. Mas não pretendo substituir uma única de minhas cartas por uma dúzia de e-mails. Amigos meus, não deixem de me escrever cartas! E compreendam minha eventual ausência dos sistemas ultrainstantâneos de comunicação: eu poderia ficar preso em frente ao computador usando o MSN durante o tempo de uma carta, mas a comunicação não seria tão intensa quanto a que colocaríamos no papel.
Mas estamos numa época em que o até forno de microondas deixou de ser sinônimo de rapidez para ser mais lento que outros eletrodomésticos, estes sim com a agilidade que nos acostumamos a cobrar de nós mesmos. Um sorriso para a foto, mas depressa, por favor! Parece que já não teríamos tempo para rebobinar uma fita cassete, se isto ainda fosse necessário; que dirá tempo para escrever uma carta.

crônica e fotografia por Eduardo Trindade

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Silêncio


Mãos pousadas no colo,
pernas cruzadas,
olhos manchados de tristeza.
Sentada a um canto,
a moça de vestido longo
que sonhara, esperançosa,
suspirava o fim da festa.



versos e imagem por Eduardo Trindade

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Como Branca de Neve


Repousa no sereno da madrugada
de um dia que ainda não veio.
Mas quem abrirá seu peito
à primeira rosa da alvorada?















fotografia (Óbidos, cidade de conto de fadas) e versos de Eduardo Trindade




Nota: alguns já devem ter reparado que o blogue está de endereço novo. Agora, para acessá-lo, basta ir a
http://www.edutrindade.com
Para facilitar, o antigo endereço continua funcionando.

sábado, 13 de junho de 2009

O Carteiro

crônica de Eduardo Trindade
Vocês se lembram do carteiro do Chaves, o Jaiminho?
(Como boa parte das crianças da minha geração, eu cresci assistindo aos seriados do Chaves e do Chapolin...)
Pois então, Jaiminho, o impagável carteiro vindo de Tangamandapio... Eu descobri que ele ainda trabalha nos correios e está entregando cartas aqui na minha rua!
Assim: ontem, dia dos namorados chuvoso, no instante em que eu entrava no prédio chegou o carteiro com uma entrega para mim (sim, era um presente dela!).
E não é que o carteiro era o Jaminho? Continuava com o mesmo bigode grisalho, a mesma barriga, o mesmo jeito atrapalhado... Faltava apenas a bicicleta.
O carteiro me entregou a caixa e precisava que eu assinasse o recebimento. Mas – imaginem vocês! – ele não conseguia encontrar a folha de papel onde eu devia assinar. Remexeu num bolso do casaco, e nada; remexeu no outro bolso, saíram umas tantas cartas soltas, mas nada da tal folha. Pegou então a sua bolsa de carteiro, virou-a de ponta cabeça, sacudindo, fazendo cair todas as cartas! Neste momento, para não perder o clima nostálgico, eu me lembrei dos programas infantis em que a apresentadora revirava um monte de cartas enviadas pelos telespectadores antes de sortear uma. Com a diferença de que eu nunca tinha visto um carteiro fazer isso na minha frente, em pleno serviço!
Pois o Jaiminho continuava ali: revirou aquela pequena montanha, revirou e nada... Até que achou, no meio das cartas, um saco preto, desses de lixo. Virou o saco sobre a montanha de cartas, fazendo cair mais uma porção de envelopes e finalmente tirou do meio daquilo tudo um pedaço de papel amassado, ou seja, a folha onde eu devia assinar o recebimento.
E em seguida, missão cumprida, pôs-se a recolher tudo com a maior naturalidade, enquanto eu e o porteiro do prédio observávamos, incrédulos e divertidos!

imagem: arte digital sobre fotografia daqui

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Um beijo

De mãos dadas
na saída da escola
trocaram furtivamente
o primeiro beijo.

Quantos beijos mais
sequer imaginavam
que iriam acontecer!

E quantas promessas
de amor infinito
ainda por vir,
todas intensas
e inevitavelmente finitas
(mesmo assim belas)
como o próprio beijo,
como a própria vida.



versos e cores por Eduardo Trindade

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cemitério Virtual

Uma moda já bastante persistente no mundo cibernético é a das chamadas redes sociais, das quais o Orkut é o exemplo mais conhecido no Brasil. E é curioso como, a partir destas redes, algumas formas de relacionamento vão se modificando. Às vezes lentamente, é verdade, noutras vezes mais rapidamente do que estávamos acostumados. Tudo isso seria material farto para psicólogos e sociólogos. Eu, como simples cronista, não me atrevo a aprofundar o assunto, mas não posso deixar de perceber certas particularidades.
Porque as tais redes de relacionamento estão lá, permitem catalogar nossos conhecidos, classificá-los de diferentes formas e até interagir com eles. A todas essas, as pessoas continuam se encontrando, brigando, indo e vindo, às vezes dissimulando, eventualmente morrendo. E assim surge uma espécie de cemitério virtual.
Há alguns meses, um amigo faleceu tragicamente. Foi uma notícia chocante, como costumam ser as notícias deste tipo. Acontece que, depois, quando eu já me havia acostumado à perda, lembrei que aquele amigo tinha um perfil no Orkut. Um perfil bem elaborado, com textos, fotos, o mural de recados... E esse perfil, claro, continuava lá. Confesso que a constatação me arrepiou um pouco. Não tive ânimo ou coragem para fazer coisa alguma: deixei o perfil lá, quieto, entre todos os meus demais amigos.
Até que, agora, essa lembrança voltou. Pois eu reparei por acaso que um amigo em comum mantinha na sua própria página, em posição de destaque, um depoimento que havia sido enviado há tempos pelo falecido. E, sem saber explicar por que, a partir desta descoberta acabei acessando o perfil do meu velho amigo.
À primeira vista, tudo parecia normal. Ele estava lá, com o mesmo sorriso na fotografia, os mesmos traços de humor na descrição, os mesmos erros de ortografia aqui e ali. Os desavisados não perceberiam nada anormal. Mas, indo adiante, veriam não poucas mensagens de saudades deixadas por pessoas que, pelo visto, continuavam a escrever para o falecido – ou tentavam se comunicar com ele agora mais do que nunca. Perdoem a reação destas pessoas. Acho que religião alguma conseguiu isso: preces que não se perdem, mas que ficam registradas e públicas para quem as quiser acompanhar, ainda que involuntariamente; conversas com o além registradas num espaço inteiramente novo e eventualmente captadas pelos radioamadores de nosso tempo. Palavras como flores em um túmulo. Com a diferença de que estas flores, mesmo sendo talvez menos tangíveis, são definitivamente mais perenes. Estão lá, gravadas, nem precisariam ser renovadas. Mas surpreende perceber que são, sim, continuamente renovadas. Mais e mais mensagens.
E também alguns anúncios comerciais, convites, iscas para vírus e pornografia obviamente não solicitada. É a facilidade assustadora da comunicação ao alcance dos dedos. Falar com o outro lado do mundo, ou com o outro mundo, nunca foi tão simples. E ainda há quem duvide de que estamos na era da informação. Os folhetos de propaganda, quem diria, são entregues até aos mortos do cemitério.

texto e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pessoa e as Valsas

Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
Fernando Pessoa

Ora, vejam! Fernando Pessoa, o poeta, em Lisboa, lê As Valsas Invisíveis!
Gostará ele dos versos?

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Picadeiro

Voltando do circo
quero ser mais que ilusão.
Quero-te mais que ilusão.
Minha matéria são teus lábios:
com eles sorrio,
contigo extraio
do escondido do peito
o sentido secreto
jamais suspeitado
e jorram flores
de lágrimas insepultas
sob beijos sedentos.
Voltando ao circo
quer ser mágico,
quero-te minha
mais perfeita
mágica.

Eduardo Trindade

terça-feira, 12 de maio de 2009

Dentro da noite veloz

Xilogravura de Eduardo Trindade

Na quebrada do Yuro
eram 13,30 horas
(em São Paulo
era mais tarde; em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
Na quebrada do rio Yuro
a claridade da hora
mostrava seu fundo escuro:
as águas limpas batiam
sem passado e sem futuro.

(Ferreira Gullar)

Mais uma xilogravura. O título desta foi roubado de Gullar. E assim como há muitas noites, esta pode ser em muitos lugares: na Lapa carioca, em Paraty, São Luís, na antiga Cidade Baixa portoalegrense, ou talvez num sonho...

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Poema em forma de gorjeio

Sabiá cisca no muro.

No alto do muro
procurando
sementes,
insetos,
pequenos galhos,
sabe-se lá o que mais.

Vai de um lado a outro
por toda a extensão do muro.
O muro se faz passarela,
passarela se faz caminho.
O sabiá caminha
– percorre
seu pequeno mundo.

O sabiá,
ocupado que está,
não tem tempo de reparar
cá embaixo:
dos dois lados do muro,
dois vizinhos discutem
uma questão de fronteiras.


por Eduardo Trindade

sábado, 25 de abril de 2009

Cores de Abril

Flores na sacada

emoldurando a janela.


Tempo de cuidar das plantas.


Nova terra, água fresca,

tesoura de poda,

caminho aberto para os ramos

que vêm a caminho.


Terra nova

para a planta dos pés,

caminhar jubiloso

ao vento fresco.


Renovação:

é dia de sair à rua

com um cravo na lapela.



(Hoje, 25 de abril, nasceu minha sobrinha Sabrina. Nome de fada e dia de cravos.)


Eduardo Trindade

domingo, 19 de abril de 2009

Cartola Vermelha (2/2)


Enquanto ela falava, as nuvens se adensavam, o céu escurecia e diminuía a quantidade de pessoas na rua. Eu sabia que deveria ir para casa, mas estava encantado pelas palavras rápidas e fáceis daquela menina. Volantina Violeta... Ela continuava empolgada, falando do circo, da família, de lembranças... Porém, como o céu começava a ser riscado por alguns trovões e já quase não se via sombras na rua, foi me crescendo um medo de sermos pegos pela chuva, desprevenidos e desabrigados. Olhei para o relógio com uma leve impaciência e arrisquei:

— Para onde é que vais agora, mocinha Violeta?

— Preciso levar a cartola.

— É...?

— Agora que achei a cartola, papai vai gostar de tê-la de volta. Ele precisa dela. Para que haja circo.

— Teu pai...

— Um dia, há muito tempo atrás, o circo pegou fogo... Dizem que foi um domador, um que tinha sido mandado embora porque o viram maltratando o elefante, dizem que ele é que tocou fogo em tudo. Eu não sei se existe gente ruim assim, pode ter sido um dragão que estava resfriado e deu um espirro. Mas aí pegou fogo. E foi o fim. Virou fumaça o homem de roupa colorida, só sobrou a cartola. Essa aqui.

Enquanto ela me apontava a velha cartola vermelha com um gesto indiferente, entendi que a menina tinha ficado órfã muito pequena, talvez antes mesmo de nascer. Minha memória, que costuma ter dedos compridos, voou longe e buscou a lembrança de um longínquo grande incêndio num circo à beira do rio, incêndio que consumiu cores e vidas e ocupou em vão as páginas dos jornais. Mas eu ainda não tinha entendido tudo. Ela estava levando a cartola? Para quem? Abri a boca para fazer uma pergunta, mas nesse instante a tempestade começou a desabar em gotas grossas. A menina ficou visivelmente alvoroçada, recuou, olhou para o alto e para os lados, pediu desculpas:

— Preciso ir, preciso ir. Eu não queria molhar a cartola. Ele não vai gostar de ver a cartola molhada. Pode pensar que não cuido das coisas dele. Desculpa. Eu já vou. Vai também, se ficarmos aqui parados acabamos ensopados. Quem sabe a gente se encontre outro dia... Quem sabe no circo?

— Mas se já não há mais circos..?

Ela, porém, não respondeu. Já se afastava, desviando da água que escorria pelas marquises. A noite descera. A escuridão se adensara. Os lampiões, agora acesos, pareciam incapazes de vencer aquele ar de solidão que surgira de repente. Olhei. O rio eu sabia que estava perto, sabia pelo barulho das águas da chuva e da correnteza que se misturavam, mas meus olhos não distinguiam nada. Um ziguezague lépido cortou a minha frente e vi um tênue borrão vermelho sumir no escuro. O lampião da rua nas gotas que caíam criava um piscar frenético. Como reflexos no picadeiro.

Súbito, um novo relâmpago venceu a noite. Avistei pela última vez a menina, já na margem, agora de frente para uma figura alta e delgada que ajustava à cabeça uma certa cartola vermelha com fita de cetim. Tive a impressão de que a figura se dirigia para o meio do rio, caminhando, enquanto a menina observava. Mas já não tinha certeza de nada. Os trovões amainaram e a escuridão voltou. Não a vi mais. O circo, enfim, deixara a cidade.


conto de Eduardo Trindade

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Cartola Vermelha (1/2)

Era uma daquelas tardes de outono em que o céu se tinge de escuro e a noite parece que tem pressa de chegar, disfarçada em nuvens cinzas.

Uma menina descia a rua em direção ao rio. Vinha sozinha, indiferente ao movimento de pessoas ansiosas para chegar em casa, escapar da chuva. A menina usava uma cartola.

Uma cartola vermelha.

Uma cartola vermelha e brilhante, com uma fita também vermelha e brilhante que terminava num elegante laço.

A cartola era ligeiramente grande para a menina. Ou seria a menina ligeiramente pequena para a cartola? Penso que a cartola é que era grande. As meninas, como qualquer pessoa, são do tamanho que são, umas cabem na palma da mão, outras cabem no coração. Esta vai tão leve que poderia andar de balão. Mas vai é caminhando depressa, serelepe, saltando poças imaginárias da água que ainda não começou a cair.

Olhando bem, é como eu desconfiava: a cartola não é tão grande assim, ela se ajusta quase com perfeição à cabeça da menina. Acontece simplesmente que a menina é miúda, miudinha, e a cartola de copa bastante alta cria um curioso contraste. Uma figura que chama a atenção enquanto desce a rua. Um ponto vermelho, ou melhor, um risco vermelho em ziguezague na direção do rio.

Alguém aí já viu isso? Uma guriazinha lépida usando cartola vermelha desviando de poças que não existem?

Ops!... A cartola saiu voando! E lá vai a menina saltitando, agora em linha reta, tentando alcançar a cartola que foge. Estranho isso, parece que não há vento algum e, no entanto, uma imperceptível lufada deve ter arrancado a cartola. Ou terá sido algum movimento mais brusco que a fez escapulir?

Pronto, a menina acabou de recuperar o adereço e agora está ajeitando-o novamente no topo da cabeça. Ao correr atrás da cartola, a menina se aproximou do rio e de mim. Há uma banca de jornal perto da esquina, é onde estou agora, e minha personagem está a poucos passos daqui. Parou, parece que finalmente indecisa sobre o rumo a seguir, ou talvez simplesmente tomando fôlego. De repente, repara em mim, é o que sinto pelos seus olhos sob a aba do chapéu, olhos curiosos postos nos meus. Eu falo:

— Boa tarde, menina.

Apenas os olhos dela, agora mais acesos e mais curiosos, a me responder. Torno a falar:

— Boa tarde, menina. Gostei do teu chapéu...

— Ah... Obrigada.

Ela obviamente não sabe o que dizer. Na verdade, eu também não sei. Começo a sentir remorso por ter interrompido aquele momento lúdico da menina correndo com um chapéu colorido. Agora não tenho como lhe restituir a espontaneidade. Ela, porém, logo supera a timidez e passa a falar num ritmo de quem quer desabafar:

— Foi mamãe quem fez...

— O quê?

— O laço, a fita. Foi mamãe quem fez. E a cartola estava guardada. Era do papai. Estava guardada há muitos anos, sabe, agora eu a achei. Lá em casa tem um grande baú, um baú grande e preto, parece coisa de pirata... Não me deixavam mexer nele, mas agora eu posso mexer. Não é de pirata, é da época do circo...

— Circo?

— É, sim, circo, sabe? Daqueles com um toldo grande todo colorido, listras amarelas, azuis, vermelhas... E palhaços, e mágicos, e moças bonitas que andavam na corda-bamba... E os animais, tantos, elefantes, leões, girafas, unicórnios...

— Unicórnios?

— Sim, unicórnios, e cachorros que jogavam futebol, e macacos que montavam a cavalo... E o homem de cartola vermelha bem no meio do picadeiro, vestido numa roupa bem bonita, anunciando e orquestrando tudo. Tudo. Tudo isso era no tempo em que havia um monte de circos por aí, eles viviam viajando entre uma cidade e outra. E toda a gente vivia no circo, e toda a gente trabalhava no circo. Porque as pessoas todas faziam mágicas, faziam malabarismos, conversavam com os bichos, pregavam peças... Os palhaços, né? Que isso de pregar peças era com eles. Mamãe diz que era muito engraçado, mamãe conta um monte de histórias daquele tempo.

— Ah... Ela gostava, então? Ela devia gostar...

— Ela sente muitas saudades. Era a vida dela. Ela tem nome de flor, mas a vida dela era circo. E eu nasci com nome de circo, mas quando eu nasci o circo deixou de existir. Ela diz que então eu parei de ser circo e passei a ser flor.

— Ah, é?...

— É sim. Margarida é mamãe. E eu, Volantina...

— Volantina...?

— Volantina Violeta, que é para lembrar que eu vim do circo, mas também sou flor. Mas toda minha família veio do circo. É como eu falei, todo mundo era circo. O vovô era palhaço, o melhor palhaço do mundo, precisava ver, até nas fotos em preto e branco mais antigas parece que ele era cheio de cor. A vovó montava a cavalo, fazia acrobacias em cima dos cavalos. E o papai, ah!... O moço todo bonito da roupa brilhante e da cartola vermelha.

— Eu nunca tinha visto cartola assim vermelha, sabe?

— É por causa disso que eu falei, os circos acabaram. Ninguém mais se lembra, quase ninguém. E eu virei só Violeta.


conto de Eduardo Trindade

Ler a continuação

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Mais selos para o blogue

As palavras e os gestos carinhosos não param de chegar às Valsas Invisíveis. Recebi mais selos virtuais. A Marta, criativa amiga que eu já citei anteriormente aqui, enviou d’além-mar o prêmio Jovens que pensam. E Amber Girl, a enigmática garota de âmbar, ofereceu cinco selos, entre eles o prêmio Dardos e Esse blog é arretado de bom. Muito obrigado às duas pela gentileza.















Esses selos às vezes vêm com regras complicadas: deve-se indicar tantas pessoas, responder a um longo formulário... Como eu nunca gostei de correntes, sinto-me no direito de quebrar estas regras ao meu bel-prazer (os blogueiros mais atentos já devem ter reparado nisso). Eu prefiro é usar o selo, de vez em quando, para fazer alguma divagação sobre pessoas e espaços que encontro na Internet.

Como um dos selos que recebi é Jovens que pensam, resolvi então falar de uma das escritoras mais jovens que conheço, que é também responsável por um dos primeiros blogues que acompanhei: Anitha Rosenrot. Anitha tem uma cartola mágica. Ela previu que, um dia, meu livro estaria nas livrarias e as crianças estudariam os meus versos na escola, o que me emocionou pois, sendo uma previsão da Anitha, era preciso levar a sério. Não é à toa que as coisas estão acontecendo conforme as palavras dela. Quanto a mim, não costumo fazer previsões mágicas, mas ouso dizer que, se continuar escrevendo, Anitha é uma promessa do mundo das letras. Então que escreva e que não tenha medo de mostrar seus escritos para nós, leitores.
Um último comentário: já que Anitha é a moça da cartola, aproveito para avisar que amanhã teremos publicado aqui meu novo conto, que gira justamente em torno de uma cartola...