quarta-feira, 29 de julho de 2009

Máscara

Despido o nariz vermelho,
lavado o rosto envelhecido,
assustou-se no espelho:

um palhaço
que não sabia sorrir
...................sem a máscara.











por Eduardo Trindade

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Leitura

por Eduardo Trindade

Pedro abriu o livro na página indicada pela professora e iniciou a leitura. Sua voz límpida enchia a sala à medida que corria os olhos pelas linhas. Sua oratória e a segurança com que escandia as palavras enchiam de gosto a professora, que não lhe poupava elogios. Por isto mesmo, era escolhido com frequência para as leituras na escola.
Em casa, diziam que tinha facilidade com os livros. Gostava de lê-los. Mais que isto, devorava-os. Livros de todos os tipos, a começar pelos que lhe compravam os pais, e em seguida os tantos que encontrava na biblioteca. Não chegava a ser um menino recluso, mas era inegável que, muitas vezes, preferia a companhia de um livro à companhia dos colegas que viviam na rua a correr e a jogar bola.
Lembrava-se de, ainda pequeno, ser acalentado, na cama, pela voz da mãe que lia para ele inúmeros contos infantis. Logo que pôde, quis ele mesmo decifrar as histórias que ficavam encerradas naquelas páginas de papel. Descoberto o enigma dos símbolos do alfabeto, mostrava a todo mundo, orgulhoso, a sua familiaridade com a leitura. Municiou-se dos mesmos livros que a mãe costumava ler para ele, passou a se instalar ao pé da irmãzinha pequena e lia ele mesmo as histórias para a menina. Ela ficava encantada, ele mais ainda.
Naquele dia, conforme a professora havia pedido, estava lendo um texto em voz alta para toda a turma com a sua confiança habitual. De repente, engasgou-se com uma palavra nova. Uma palavra com a qual nunca havia se deparado, inescrutável, estava ali a escarnecer dele, amedrontando-o, deixando-o lívido. Pedro tremia, sem conseguir vencer aquela misteriosa palavra:
— ...ines... ines... cru... tá... — gaguejava e, tomado de uma súbita e poderosa insegurança, voltava ao início: — ines... ines...
Até que a professora, vendo que o menino estava paralisado, e que começavam a surgir algumas risadinhas entre os demais alunos, ajudou-o:
— Inescrutável.
Tudo isto, que durou apenas um instante, vocês irão concordar comigo que para o Pedro foi uma longa eternidade. Tanto que ele ainda demorou um pouco para voltar a si e continuar a leitura, livre daquela palavra-pedra-no-caminho, mas sentindo-se intimamente humilhado. Não duvidem de que o restante da aula foi um tormento para o menino, que suspirou aliviado ao ouvir o toque para o recreio.
E o que fez Pedro? Saiu da sala para o pátio da escola com todos os seus colegas, mas era como se saísse sozinho. Como se fugisse. Sentou-se a um canto, num dos degraus de uma escada que não levava a lugar algum, apoiou um livro sobre os joelhos e pôs-se a ler. O rosto metido entre as páginas. Mergulhava numa leitura para esquecer de outra.
E foi como se mergulhasse numa grande espiral. Já não ouvia os gritos das crianças correndo pelo pátio. Tudo era apenas um zumbido indefinido. O vento soprava. Percebeu que o vento vinha das páginas do livro, que tremiam: as folhas estavam correndo sozinhas, e rapidamente, o livro batia as asas, queria voar! Mas que coisa! O menino não acreditou, acercou-se mais, o zumbido ficou mais intenso. Fechou os olhos para ouvir melhor, e foi como se os abrisse mais ainda. Agarrado ao livro, o menino voava. Sentia que passavam por si campos, mares, cidades. Sabia que ali viviam poetas, piratas, doutores. Quantas vidas se esconderiam nas páginas do livro? Concentrou-se mais. E lá estava o zumbido, crescendo, crescendo, até se apresentar a Pedro. Que, então, forcejou para desvendá-lo:
— Ines... inescrutável!
No mesmo instante, sentiu que uma mão tocava seu ombro, e foi como se o puxassem para fora do livro. O zumbido sumiu, o vento se aquietou, o coração parou, Pedro pestanejou e viu uma menina de grandes olhos verdes olhando para si. Ela falou:
— Oi... Tu és o Pedro, não? Ouvi falar de ti. Posso me sentar? — E, como ele aquiescesse em silêncio, a menina se aproximou. E completou: — Eu sou a Inês.
Pedro baixou os olhos e sentiu que os dela acompanhavam os seus. Soltou o livro. Já não precisava dele: a história que leria, enquanto durasse o encanto, era a sua própria.


Aproveito para agradecer a gentileza da Maggie, que escreveu uma belíssima resenha sobre o meu livro: As Valsas Invisíveis.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Liberdade

Quero escrever o que nunca foi lido,
cantar o que ninguém gritou
e amar como não se sentiu jamais.

É só uma estrada,
assim diz o mapa, o guia, o costume.
Mas por onde andam os pés
desavisados
que ousaram trilhar atalhos?

Não quero ser avisado.
Deixem-me descobrir sozinho
o gosto da praia que eu escolher.

E o beijo que eu provar
da namorada que nem ouso querer,
esse eu não contarei.

(Precisarei de um mistério
quando o poema terminar.)

versos e fotografia de Eduardo Trindade

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Do sentido da vida


Entre a expectativa
de ser semente
para poder brotar
e o êxtase
de ser fruto
e saber semear
escolheu somente
a beleza transitória
de uma rosa branca.








versos e imagem por Eduardo Trindade

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Saber esperar

Hoje em dia, é difícil encontrar alguém que não tenha uma câmera fotográfica. Ou mais de uma. A fotografia está tão difundida que já não se pode mais falar sequer “as pessoas fotografam até com o telefone”; o mais adequado é “as pessoas fotografam pelo menos com o telefone”. E essa popularização da fotografia, que tem os seus méritos, às vezes assusta quando nos damos conta dela. Mais que um susto, porém, existe uma mudança de comportamento silenciosa correndo junto com tudo isso.
O registro de uma imagem, há poucos anos, começava com o ato de colocar o filme na máquina fotográfica. Ou melhor: começava quando se escolhia o filme, o que podia ser um dilema complicado. Eu, por exemplo, sou fascinado por fotografia em preto-e-branco. E para fazer uma fotografia assim era preciso colocar um filme especifico na máquina, o que significava que as próximas 36 imagens sairiam em preto-e-branco. Equipado para fotografar apenas preto-e-branco, eu ficava torcendo para que não surgisse nada muito colorido na minha frente...
Mas a mudança mais significativa foi, claro, quanto à revelação das imagens. As crianças, hoje, não devem sequer saber o que é revelar um filme fotográfico. No entanto, após tirar uma foto nós não tínhamos como saber se ela havia ficado boa. A iluminação, o enquadramento, o resultado só seria visto dia ou dias depois. E nada de retocar digitalmente a imagem para corrigir os defeitos. A foto é o que é.
A espera. Horas ou dias até se poder ver o resultado de uma foto. Quem nem sempre agradava pela imagem em si, é verdade, mas que se confundia com um outro valor muito significativo: a fotografia acompanhava a memória. Buscar as fotos recém reveladas era uma viagem que se prolongava além das férias, um fim-de-semana que se prolongava até segunda ou terça-feira. Quando começava a bater a saudade daquela pessoa ou daquele lugar, nesta hora é que a revelação das fotos ficava pronta, finalmente nos sentávamos para olhar tudo. Com os olhos cheios de lembranças.
Não temos mais isso. O ritual da foto se concentrou completamente no instante do clique e quase não há mistério a ser revelado posteriormente. E assim vamos desaprendendo a esperar.
Na escrita, um fenômeno parecido. Sou dos que ainda escrevem cartas. Adoro. Todo o lento ritual, a escolha do papel, o cuidado com a letra, a incorporação de algum desenho, cartão ou dobradura ao envelope. Um pequeno presente que se constrói. E, claro, a espera. Não é fascinante imaginar o instante em que a carta chega, trazendo mensagens, texturas, aromas? Como um livro novo, personalizado, gostoso de se folhear. Não nego a importância do e-mail. É minha ferramenta de trabalho e meu principal meio de comunicação com as pessoas que moram longe. É rápido e prático. Mas não pretendo substituir uma única de minhas cartas por uma dúzia de e-mails. Amigos meus, não deixem de me escrever cartas! E compreendam minha eventual ausência dos sistemas ultrainstantâneos de comunicação: eu poderia ficar preso em frente ao computador usando o MSN durante o tempo de uma carta, mas a comunicação não seria tão intensa quanto a que colocaríamos no papel.
Mas estamos numa época em que o até forno de microondas deixou de ser sinônimo de rapidez para ser mais lento que outros eletrodomésticos, estes sim com a agilidade que nos acostumamos a cobrar de nós mesmos. Um sorriso para a foto, mas depressa, por favor! Parece que já não teríamos tempo para rebobinar uma fita cassete, se isto ainda fosse necessário; que dirá tempo para escrever uma carta.

crônica e fotografia por Eduardo Trindade