quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Astronauta

Diziam que a lua era feita de queijo. Diziam às crianças.
Curioso isso, não?
Diziam a nós, crianças que sequer gostávamos tanto assim de queijo!
Mas ninguém dizia que a lua era de chocolate branco ou que o sol era uma imensa gemada.
Cresci aprendendo a gostar de queijo.
Descobri que a lua era feita de uma areia branca e finíssima.
Astronauta, eu?
Hoje, corro na praia.

Eduardo Trindade

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Barba Branca

Crônica de fim de ano
A antevéspera do Natal acentuava o mau humor. Que dizer de todas aquelas decorações das lojas, que dizer das propagandas de coca-cola que a televisão mostrava? Tudo muito bonito... Tudo merecendo prêmios em Cannes, tudo tão pouco espontâneo. Ele tinha nome de santo, e no entanto fora preterido para uma vaga de Papai Noel de shopping. Orgulhava-se da barba branca, vasta, cultivada a custo, e fora passado para trás por um ninguém qualquer com adereços de plástico. Agora, caminhava pela rua, aos trambolhões com a multidão impaciente. A iluminação das vitrines incendiava seu mau humor. Sua barba inútil. Hirsuta.
Barba hirsuta. Tinha aprendido a palavra num filme. Adjetivo besta que só serve mesmo para se aplicar a uma barba de desempregado como a dele. Inútil. Adiava a hora de voltar para casa, não queria encarar a mulher. Imprestável, dissera-lhe ela, mas a culpa não era dele. Teimara com ela e chegaram a discutir. Depois saíra à rua em busca de carinho e fora recebido por outdoors coloridos. Nas calçadas, bancas com papais-noéis eletrônicos ensaiando danças ridículas, camelôs com gorros vermelhos gritando feliz-Natal, tudo na promoção.
— Malditos produtos chineses! — extravasou ao esbarrar num amontoado de pinheirinhos de plástico.
Seguiu chutando cascalhos. Por pouco não acertou a canela de uma mulher gorda que vinha na direção contrária carregando sacolas. Meteu as duas mãos nos bolsos. Em um deles, o celular pré-pago sem créditos. No outro, um furo.
— Porcaria! — havia perdido, pelo bolso furado, as moedas dadas como troco pelo cobrador do ônibus. Emprego idiota esse de cobrador de ônibus, só não é mais idiota que o emprego de ascensorista. Quem precisa de ascensorista, será que existe alguém no mundo que não sabe operar sozinho um elevador? Em vez de ascensoristas, bem que podiam inventar uma profissão para ajudar velhinhas a usar o caixa eletrônico dos bancos. Assim, talvez, diminuíssem as filas.
— Bem que eu podia ser contratado para ajudar as velhinhas no maldito caixa eletrônico... — pensou em voz alta, contra seu costume. Ultimamente, dera para isso: falava sozinho, coisa de doido varrido. Praguejou contra si mesmo.
Quis atravessar a rua, parou à espera de que se acendesse a luz verde. A poucos metros, uma loja de eletrodomésticos. Várias televisões exageradamente grandes reproduziam todas a mesma cena de um videoclipe: a versão brega de uma canção natalina. Então, do interior da loja saiu uma moça de vestido levando dois meninos pelas mãos. Ficou reparando nas curvas sob o tecido, achando incrível que ela já fosse mãe de dois pirralhos e concluindo que as mulheres estão mesmo começando cada vez mais cedo. Como a sinaleira ainda estivesse fechada, aproximaram-se o suficiente para que um dos meninos o perscrutasse por trás da barba até o íntimo de seus olhos. Neste instante se acendeu o bonequinho verde na sinaleira para pedestres e o homem com nome de santo saiu apressado, misturando-se à multidão de figurantes do centro da cidade, mas não tão rápido que o impedisse de ouvir, às suas costas, a voz eufórica:
— Mamãe, mamãe, eu vi o Papai Noel, lá vai ele disfarçado de vovô!
Passou a mão pela barba branca, hirsuta, como aprendera no filme, e não conseguiu resistir ao primeiro sorriso do dia.

Eduardo Trindade

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dos espaços


Em todos os cômodos da casa
depois que te foste
restou um incômodo
...................................vazio.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cena de Verão

Este suor que escorre pelo rosto e evapora antes que possamos enxugá-lo, esta areia que gruda no corpo, esta brisa que parece nunca ser suficiente, esta vontade de esquecer as horas. Esta praia. Este óculos que usas e onde vejo meu rosto, eu que preferiria vê-lo refletido em teus olhos. As crianças mais adiante jogando bola e a minha apreensão por um chute mal dado que possa te acertar. O romance policial deixado de lado, como ler na praia? Os corpos exuberantes por todos os lados. Tão exuberantes e abundantes, tão monótonos. Tua pele branca e a minha preocupação com os raios ultravioleta, o buraco na camada de ozônio. Tua pele deliciosamente mais bonita que a de qualquer mulata, pele autêntica. O pregão de um vendedor de picolés que derretem antes do fim. Um velhinho que passou e olhou para teu corpo, um velhinho que me encheu de ciúmes — todo cuidado é pouco! Um homem assumidamente ciumento, eu. Inseguro, sim. Seguraria teu pulso para apontar o avião que desenha corações lá no alto. Mas dormes. Um sonho de verão? O relógio no teu pulso, o ponteiro e as horas que não deviam passar nunca. A maré que sobe, teus pés molhados, levantas-te de súbito. Assustada com a hora, já é tarde! Vais-te embora às pressas, recolhendo toalha e chinelos e teu corpo assumidamente branco. Nem olhas para mim, esquecido e inofensivo. Julgas que não me conheces. Voyeur? Eu te amaria antes de te conhecer, mas li o verão inteiro no teu pulso, agora ficou tarde.

Recados
1. Lembro que este pequeno conto, como a maioria dos meus textos, é uma obra de ficção.
2. A votação do TopBlog se encerrou e eu agradeço profundamente a todos que contribuíram para colocar este cronista virtual entre os finalistas. Obrigado mesmo!
3. Como forma de agradecimento e também como mimo aos leitores (os fiéis e os não tão fiéis, que este blogue é como coração de mãe), pretendo fazer uma promoção para distribuir três livros. Aguardem! E aos que tiverem sugestões sobre como deve ser a promoção, por favor me escrevam!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Todas as cartas de amor


Juntei os cacos de palavras, os restos de páginas partidas, as sobras de frases nunca ditas. Uni, colei e aproximei com vírgulas, preposições, conjunções e até com adjetivos (todas as cartas de amor são ridículas). E reticências. Preenchi os espaços vazios com reticências como, nos mapas antigos, as figuras de seres fantásticos cobriam as áreas ainda não exploradas pelos navegadores. Tanto a descobrir, tanto a ser dito, e eu me perdendo em devaneios. Distraí-me com arabescos no canto da folha enquanto esperava o telefonema, a noite, a inspiração. A coragem não veio e o silêncio não ajudou. No escuro, atabalhoado, deixei que fossem ao chão as peças do quebra-cabeça. O vento levou, a poeira cobriu, o tempo comeu e nunca ficaste sabendo. A gaveta amarelou o que nunca lancei ao ar, ao mar. Como nunca me lancei a teus braços. As rimas soltas não chegaram a se encontrar, a semente que poderia ter florescido adormeceu no mofo de um quarto sem luz enquanto, lá fora, ias rindo pela rua, mãos e lábios unidos a alguém que escrevia menos e agia mais. Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Eduardo Trindade,
com citação de Álvaro de Campos

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da Origem das Espécies

Aviões a jato,
teleconferências,
Internet
(MSN, twitter, facebook e afins),
o universo
numa casca de noz,
três dimensões,
quatro dimensões,
realidade virtual...

Sim, está fundada uma nova espécie:
exultemos,
vivemos a era
do Homo virtualis.

Explosão demográfica,
ruas e calçadas
tão cheias de gente,
do novo Homo virtualis.

E as pessoas se esbarrando
presas no trânsito,
presas da rotina
(faminto tigre dente-de-sabre pós-moderno),
as pessoas batalhando
pela conexão nossa banda-larga de cada dia
e pelos domingos na praia
(congestionada de guarda-sóis),
essas pessoas
(orgulhoso Homo virtualis pós-moderno)
já não conhecem o que seja
humano de verdade.

Texto: Eduardo Trindade
Fotografia: Charles Chaplin em
Tempos Modernos

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Uma noite com Paul McCartney

Qual a ultima vez em que fizeste algo pela primeira vez? Eis talvez minha pergunta preferida. Não que se deva evitar a rotina a todo custo, mas muitas vezes é saindo da rotina que se degusta a vida, incluindo a própria rotina.
Pois ontem, primeira e única noite, eu assisti ao espetáculo de Paul McCartney em Porto Alegre.
Muita gente dirá que fui um privilegiado. Exagero de fã? Ora sim, depois desta noite, não tenho duvida de que estar lá foi mesmo um privilégio. Então, deem licença a este paperback writer virtual para contar a sua história...
Comecemos pelos meus antecedentes. Modestos. Não nasci numa família particularmente beatlemaníaca. Lá em casa, ouvia-se Beatles com moderação. Na adolescência, comecei a me interessar mais, seguindo meu estilo (irremediavelmente nostálgico) de ter saudades até do que não vivi. Ouvia as músicas, lia as histórias (curioso que sempre fui), sem exageros. Mesmo assim, quem me conhece há mais tempo já me ouvia dizer que, pouco afeito aos megashows, de todos os artistas possíveis, se havia um que eu gostaria de ver, este artista seria Paul McCartney.
Falava isso como um desejo distante até o dia em que a possibilidade se tornou real com o anúncio da vinda dele para o Brasil, e mais que isso, para Porto Alegre.
Não vou detalhar a expectativa até conseguir os ingressos, nem a espera na fila, nem outras histórias que, sozinhas, já renderiam boas crônicas. Tudo pré-histórias a partir do momento em que Sir Paul subiu ao palco.
Não se trata apenas de uma veneração fanática, mas da personificação de momentos que aquelas músicas simbolizam, daí a força que McCartney tem ainda hoje. Verdade que foi uma noite com direito a todo tipo de fãs exaltados. O que chega a ser curioso. Quem vê as imagens das meninas histéricas na década de 1960 pode não se espantar de que as filhas e netas daquelas meninas sigam tendo a mesma exaltação adolescente... mas pelo mesmo ídolo? Um grupo de gurias atrás de mim dava um espetáculo à parte de beatlemania, cantando, exaltando-se, gritando — Lindo, lindo! Ah, não acredito, não acredito, ele está ali, estamos vendo ele! — Histeria não por um ídolo teen, mas por um senhor de quase 70 anos.
E também o orgulho da terra, presente em qualquer canto do planeta e particularmente exaltado nos arredores do Guaíba. Cheguei à conclusão de que eu não trocaria o palco do Gigante da Beira-Rio sequer por outro em Liverpool. Lá o beatle estaria em casa, mas aqui eu é que estava em casa, éramos os anfitriões. E não vou disfarçar a alegre surpresa de ouvir Paul McCartney falando um português extremamente fluido para um súdito da rainha. Mais do que isso: se já tinha conquistado o publico bem antes de arriscar um "bah, tchê!" e de elogiar a plateia com sucessivos "trilegal", beirou o inacreditável ao cantar junto conosco "Ah, eu sou gaúcho!" (para os de fora, esclareço que se trata da versão local de " Ah, eu tô maluco!", bastante cantada nos estádios porto-alegrenses). Neste ponto, Paul se juntou ao Papa João Paulo II, ainda hoje lembrado por tomar chimarrão e cantar "Ucho, ucho, ucho, o papa e gaúcho". Sim, temos um orgulho um tanto provinciano, porém encantador (modéstia à parte). O que seria do todo se não fosse cada uma das particularidades que lhe dá brilho?
Não achei que fosse chegar ao ponto de verter lágrimas, mas bastaram os primeiros acordes de Hey Jude, música que toquei inúmeras vezes em meu tempo de pianista, para que eu sentisse os olhos úmidos. Sou um grande chorão. Não o único: à minha direita, outro marmanjo estava aos prantos. As meninas atrás de mim... Estas já choravam há muito tempo.
Melhor que tudo, porém, o sorriso das pessoas. Foi uma noite de sorrisos escancarados — de incredulidade, de satisfação, de sonho realizado — porque não havia dúvida de que cada pessoa ali tinha uma história particular envolvendo aquelas canções, e ouvi-las da maneira que ouvimos ontem vai muito além de gostar das músicas, de Paul ou dos Beatles; é como tocar com os dedos em parte do imaginário coletivo e individual, e sentir, de uma maneira quase boba, que aquelas canções ouvidas desde a infância despertam sensações e lembranças, dão vida a momentos que não é preciso explicar a ninguém.
Quando Paul anunciou, em português límpido, que tocaria uma música composta em homenagem a “minha gatinha Linda” e a dedicaria aos casais de namorados presentes... Verdade que, nesta hora, faltou alguém comigo a quem abraçar. Mas enquanto via minha mãe, que me acompanhou até ali com a felicidade estampada no rosto, eu tinha certeza de que aquela noite única valia a pena.
É por toda esta carga emotiva que o espetáculo de ontem foi inesquecível. O mundo pode produzir outros músicos excelentes e outras canções geniais, mas dificilmente algum conseguirá ter tanta ligação com a história particular de tanta gente: não uma ou duas, mas dezenas de músicas marcantes, esta por lembrar um filme, aquela, um beijo, a outra, um verão na praia, outra ainda, os domingos em família... Posso dizer, sem medo do exagero, que foi o show da minha vida. E quem estava lá, depois da noite de ontem, nunca mais ouvirá uma canção dos Beatles da mesma maneira.

Eduardo Trindade

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Há vaga

No choro compulsivo
da criança
do andar de cima
descubro
o quanto anda
vazio
o meu apartamento.










versos e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Das cartas na gaveta

(como n'O Livro do Desassossego)

O perigo da saudade é passar a gostar não de ti, mas da imagem que minha lembrança turva e cambiante faz de ti. É por isso que tento não chorar nas despedidas: para que meus olhos, límpidos, guardem uma visão mais pura do nosso amor. Mas choro, sempre; a memória é seletiva; e sigo com os olhos cativos de esperança. Quem sabe virás, com lágrimas mais puras que as minhas, construir comigo um espaço para novos sorrisos? O bom da saudade é que só ela pode dar gosto ao reencontro.

Eduardo Trindade

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Amarelinha

Menino,
pés descalços
na calçada da rua.

Pé ante pé,
o eco
ritmado.

Brinca de criança,
amarelinha
nas pedras da rua.

Pedra, piso,
quantos séculos
te pisaram?

Onde o menino
que corria
na calçada deserta?

Seco o espelho
da água da chuva,
poeira dos séculos.
versos e imagem por Eduardo Trindade

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Arena

Toureamos em noite escura,
ensandecidos,
amálgama de carne, pele, suor,
pulso. Toureador
na areia, nuvens do deserto.
O sangue que jorra
é meu, é teu,
quente e doce,
amargo como nunca,
álacre nunca mais.

O sangue que jorra só pode ser de ambos,
amálgama,
nenhum de nós é uma ilha,
mas a areia que nos cobre
(a noite não protege),
lances de capa e espada...
Por que a lâmina,
já não bastam tuas unhas?

Tingida de sangue a areia,
ondas de vida,
de escuro fluido vital
(a noite não distingue, meu, teu?),
ondas e mariscos
entre os dedos dos pés
dilacerados por noites em claro
toureando em vão.
Por que lâminas,
por que lanças,
lanças-te às ondas
e me lanço à espuma
rítmica, insistente, infinita.
Abandonada a capa
(nunca protegeu),
abandono-me a tourear
tua alma de sangue
(perdida?),
minha alma,
jogo de espelhos.



Prezados leitores:

Este blogue foi selecionado como finalista do concurso TopBlog na categoria Cultura! Confesso que fiquei surpreso, não esperava tanto. Agradeço a todo mundo que passou por aqui e dedicou um minuto a votar. Bem... Agora começa tudo de novo: vamos para o segundo turno (bem propício este discurso, não?), preciso novamente do voto de todos vocês, inclusive de quem já participou. Então, que tal, vamos lá? Clicando no selo ao lado, é rápido e fácil!


Eduardo Trindade

domingo, 3 de outubro de 2010

E nós, o que estamos fazendo?

Considero-me uma pessoa discreta, não sou de grandes discursos ou exaltações. Mas aprecio certos protestos silenciosos quando vejo que há necessidade deles. Por isso é que, hoje cedo, ao sair para votar, levei comigo a bandeira brasileira e, principalmente, coloquei meu nariz vermelho de palhaço.
Em outras palavras: é claro que amo esta pátria que me viu nascer, mas talvez justamente por isso não posso deixar de me manifestar contra atitudes que considero erradas. Sem dúvida, tenho muito mais orgulho da situação econômica e política do Brasil hoje do que quando comecei a entender e a repara nisto. Mas é claro, também, que ainda há tanto a fazer, tanto...
A culpa é dos políticos, dizem. Eu até concordo. Vejo muitos deles que parecem desonestos ou francamente incompetentes, quando não as duas coisas. Mas eu me nego a jogar toda a culpa neles e lavar as mãos. Vivemos numa democracia, somos todos responsáveis. Ou nos esquecemos do próprio significado da palavra política? Somos todos políticos, nenhum homem é uma ilha. Que exemplo estamos dando em casa, o que estamos ensinando nas escolas e nas ruas? Com que cara alguém que oferece propina ao guarda pode reclamar de corrupção no Congresso? Uma pessoa que embolsa um troco dado por engano tem direito de se indignar diante de uma obra superfaturada? Alguém que fura a fila no mercado pode acusar outro que compra votos para se eleger? Quem joga papel de bala no meio da rua terá menos culpa do que quem desmata a Amazônia? Talvez não.
A sociedade é a soma de todos nós e de cada um dos nossos atos. E os políticos que elegemos são, sem dúvida, reflexo desta sociedade.
Sim, eu acho difícil votar, escolher pessoas em quem confio e que merecem me representar. Mas quem disse que deveria ser fácil? Por isso mesmo, não concordo com o voto nulo: este, que querem fazer parecer um ato de rebeldia, para mim soa mais como uma injustificável preguiça. Por mais batida que seja a frase, o voto é nossa arma. Vou além: o voto é a primeira de nossas armas. As outras, com ou sem nariz de palhaço, estão ao nosso alcance em casa, na sala de aula, no escritório, na rua. Como? Buscando a honestidade nos pequenos atos. Olhando para o espelho de cara limpa. Esta corrente, sim, eu passo adiante.

Eduardo Trindade

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Azenha

As pás do moinho movidas pela água,
O ranger infinito anunciando
O passar do tempo que nunca passa.
Passam as águas?
As pás do moinho rangem sem parar.

O trigo que vem da terra,
A farinha que vem da azenha,
O moleiro a triturar,
O passado que nunca passa.

Uma mulher que foi embora,
Um filho que se perdeu,
Um moleiro solitário
Com farinha entre os dedos,
As pás do moinho rangem sem parar.



por Eduardo Trindade

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ciranda

Uma brincadeira de roda, rodava a ciranda.

Num sonho antiquado, o rondó dos cavalinhos.
Num cavalo de cancha, uma aposta milionária.
Num lance frustrado, tudo pelo espaço.
Espaço exíguo, a busca por ar,
o ar fresco das noites de lua,

os beijos abençoados, um dia, por uma noite...

Todas as fases da lua,
as voltas da vida,
o rodar da baiana,
a falta de ar
que dava a ciranda,
o espaço
de uma aposta,
o sonho antiquado
nas noites de lua,

minha boca na tua.

versos e fotografia por Eduardo Trindade

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Incidências

Julieta achava que deixar-se levar pelo acaso não compensava. Não gostava de loterias e nunca fora capaz de desprender-se das decisões que afetavam a sua vida quando pensava que podia controlá-las. Preferia a poupança à bolsa de valores. Os discos que tinha em casa à programação do rádio. As reprises da tevê à transmissão ao vivo da vida através da sua janela.
Romeu às vezes destinava algumas moedas, coisa pouca, à loteria, apenas para certificar-se de que não tinha mesmo sorte. Não lhe importava o emprego confortável e obscuro na repartição, que permitia estabilidade, horários fixos, férias todos os anos. Reagira com indiferença estoica no dia em que roubaram seu carro e no dia em que, enfim, quitara o financiamento do apartamento. Ressentia-se da timidez que, ao longo dos anos, havia se transformado em falta de ousadia e num doloroso anonimato toda vez que saía à rua.
Romeu sonhara ser reconhecido, dar entrevistas. Quando criança, treinara autógrafos em guardanapos. Depois, resignara-se à misantropia que lhe reservara o destino.
Julieta não acreditava no destino. A incerteza não podia valer a pena, era uma questão de lógica.
Tinham dito a Romeu que o seu nome romântico fora escolha de sua mãe e ele achava que isso só podia ser uma brincadeira do destino.
Julieta nunca lera Shakespeare.
Romeu buscava excitação nos encartes com propaganda de supermercados, caçava promoções, depois peregrinava pelos estabelecimentos do bairro em busca do melhor preço em cada um deles.
Julieta fazia compras para o mês.
Romeu desistira de ter companhia em casa no dia em que morrera seu cachorro.
O gato que Julieta tinha em casa fora trazido por uma tia, que praticamente a obrigara a cuidar do bichano.
Romeu adquirira a mania de mastigar ração para cães.
Julieta era vegetariana.
Os dois moravam no mesmo prédio. Vizinhos de porta, nunca se falaram. Ela usava o elevador, Romeu só subia pelas escadas.
Cruzaram-se no supermercado.
— Desculpa.
— Tudo bem, não foi nada.
Julieta não reparou em Romeu quando este esbarrou nela com a cesta de compras. Pão, um litro de leite, uma barra de chocolate meio-amargo, comida para cachorro.
Romeu seguiu caminhando automaticamente e, quando chegou à fila do caixa, não reparou que a mulher em quem esbarrara era a mesma que aguardava apoiada no carrinho à sua frente. Ovos, macarrão integral, arroz, feijão, comida para gato.
Julieta silenciosamente passou suas compras pelo caixa e pagou com cartão.
— Débito ou crédito?
— Débito.
Romeu, quando chegou ao caixa, pensou em mil maneiras de puxar assunto com a atendente e romper o silêncio que o constrangia, mas não disse palavra. Pagou em dinheiro.
Sem perceber, Romeu fez o mesmo caminho que Julieta fazia para chegar em casa.
Foi neste dia que uma falha numa subestação a quilômetros dali fez com que o bairro ficasse sem energia elétrica.
Romeu alcançou Julieta na portaria do prédio.
E subiram juntos pelas escadas, ele ajudando-a a carregar as compras, enquanto falavam de uma vez todas as conversas que nunca tinham sido ditas e descobriam coincidências em que nunca teriam acreditado.

texto e fotografia por Eduardo Trindade

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Nós


Minha alma
.........atada à tua
..................com nó de marinheiro
não esperava
.........perder-te no nevoeiro.















versos e imagem por Eduardo Trindade

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sedento

Tenho sede
de teus olhos cristalinos.
Pura miragem,
desvias quando te miro.

Cansei das migalhas
do teu sorriso.
Agora eu te quero
refeição completa.





Eduardo Trindade

terça-feira, 24 de agosto de 2010

No teu lado da cama

Há um verso que pula, há um pulso que geme.
Há uma certa tristeza que tanto parece felicidade.
Lembranças que não se sabe para que servem.
Há uma solidão que se esquece de partir
E um silêncio que grita como quem quer ficar.

Em vão te procuro entre os lençóis que abandonaste.




Por motivos diversos estive um pouco ausente da blogosfera, mas aos poucos vou retornando. Neste meio tempo, a Gaby Soncini, do blogue Uma Doce Melodia, presenteou-me com um selo. Muito obrigado pela gentileza, guria!

Eduardo Trindade

sábado, 24 de julho de 2010

Do simbolismo das palavras

Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome.
Clarice Lispector

Cadê a poesia que estava aqui? O gato comeu. O amor, o vento levou. Respeito, carinho, amizade? Teriam sido varridos para baixo do tapete? E se nos revoltarmos diante das frases feitas? Das palavras bonitas que só são bonitas porque alguém quis assim? De tão bonitas, ficaram vazias. O amor como uma modelo de passarela, de que serve? O Pequeno Príncipe como personagem de um livro que todo mundo leu, que ninguém realmente leu. E as citações tão citadas que perderam a força, moldadas que foram à força das conveniências? E a mentira repetida até virar verdade? E se a verdade se confundir com a mentira autenticada? Quando eu pegar novamente na tua mão, terá este toque o simbolismo de antes? O que vou sentir quando te arrepiares? E se não te arrepiares? Sigo em frente, até teu pescoço, tua garganta, tua medula, o recôndito em que se escondeu tua esperança. Lá onde mora o sonho descobrirei novas palavras para o meu sonho, descobriremos juntos, talvez, sílaba a sílaba, passo a passo, um nome para nosso desejo secreto de seguirmos lado a lado.

texto e imagem por Eduardo Trindade

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Circunavegação


Queres descobrir um mundo?
No teu quarto,
mais que janelas
procura espelhos.

por Eduardo Trindade

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Galileu

No fundo de uma noite insone,
observa o relógio parado.

A descoberta:
só o poema
ainda se move.








Eduardo Trindade

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A Outra Pátria de Chuteiras


Trilha sonora para esta crônica: Orelhano, Dante Ramon Ledesma
Para o tio Pepe, que hoje, mais celeste do que nunca, teria
torcido pelo seu país e abraçado este guri do outro lado da fronteira.
Não escondo de ninguém minha simpatia pelo Uruguai. É uma relação que vem da época de criança e que foi crescendo naturalmente, à medida que eu também crescia. Gaúcho, aprendi a ver os uruguaios como irmãos, ou talvez ainda mais do que isso, pois não me imagino brigando com nenhum deles.
E, nesta região do Prata e da pampa, nenhuma relação passaria indiferente ao futebol. O curioso é que nós brasileiros costumamos ver os uruguaios com muito mais simpatia do que vemos os argentinos. E teríamos motivos para que fosse exatamente o contrário, a começar pelo famoso Maracanazo de 1950. Ou, voltando mais ainda no tempo e extrapolando o campo esportivo, lembrando uma antiga rivalidade bélica: o que hoje é o Uruguai já foi província brasileira, e a independência dos nossos vizinhos foi conquistada no campo de batalha e à custa de sangue brasileiro.
Sorte que tudo isso já faz tempo e que as cicatrizes, se é que ficaram, são indolores. Converteram-se em amizade. Ah, se acontecesse o mesmo com todos os que um dia combateram em guerras fratricidas!
Alguns dos maiores admiradores da cultura brasileira que conheço nasceram no Uruguai. Assim como alguns dos maiores admiradores do nosso futebol – o que não quer dizer que não admiram o seu próprio futebol. Os uruguaios têm uma relação muito particular com a bola, relação que é marcada principalmente pela saudade. Afinal, neste território em que já foram imbatíveis, estão há mais de meio século sem um título como os do começo da sua história. Bem, saudade é algo que mexe muito comigo, e talvez este seja um fator que aumenta minha identificação com os uruguaios, embora se trate de algo perigoso, como lembra Eduardo Galeano: “Si aprendiéramos de ella, todo bien, pero no: nos refugiamos en la nostalgia cuando sentimos que nos abandona la esperanza, porque la esperanza exige audacia y la nostalgia no exige nada.
De qualquer maneira, este laço com o futebol, seja ele nostálgico ou não, deixa marcas. Em minhas conversas montevideanas sobre o esporte, era difícil eu não ser lembrado do Maracanazo – episódio que não vivi, que já foi purgado pelos nossos subsequentes títulos mundiais, e que hoje, embora ainda desperte orgulho nos uruguaios, creio que já não desperta tanta emoção em nós brasileiros. As minhas lembranças de guri são outras: de frequentar o estádio na capital uruguaia, e principalmente da comemoração efusiva de um título que eu não sabia bem qual era (hoje, fazendo as contas, suponho que seja a Copa América de 1987, vencida pela Celeste). Estávamos, se não me engano, em Colonia del Sacramento, e comemoramos junto com os uruguaios. Eu era criança e tudo era uma alegre festa. Algum tempo depois, nossos amigos uruguaios vieram a Porto Alegre e puderam retribuir a torcida e a festa ao acompanharem conosco o Gre-Nal do Século. Nesta outra comemoração, saímos em carreata pelas ruas, corações de países diferentes mais unidos que nunca.
Uma convivência dessas não se esquece. Pelo contrário, ela ainda é motivo de inúmeras histórias a cada vez que nos reunimos. E se, no dia-a-dia, já surgem motivos para relembrá-la, que dirá durante uma Copa do Mundo? Certo, pode ser só um jogo. Não justifica emoções desproporcionais. Mas não é só mais um jogo quando faz lembrar de tantos e tão bons momentos, ainda mais quando temos a oportunidade de acrescentar esperanza à doce nostalgia. Fiquei triste, hoje, com a derrota e a eliminação do Brasil. Mas me senti mais do que recompensado com a vitória heroica do Uruguai. Minha mãe acaba de contar que se ouviram fogos em Porto Alegre. Ora, saber que há tanta gente deste lado da fronteira adotando a Celeste no dia da eliminação da própria seleção brasileira é mais que curioso, é emocionante, afinal, mesmo entre irmãos, não é sempre que os braços dados conseguem abraçar tão longe e tão forte.

Eduardo Trindade
em 2 de julho de 2010,
dia da derrota brasileira para os Países Baixos
e do triunfo uruguaio sobre os ganeses.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Álbum de Figurinhas

Mais uma parceria: o blogue Ensaios em Foco publicou uma crônica de minha autoria.

Álbum de Figurinhas
Hoje, indo para o trabalho, passei em uma banca de revistas e comprei um álbum de figurinhas. Um álbum e, claro, alguns pacotes de figurinhas. Em casa, vou me sentar no sofá da sala, abrir os pacotinhos um a um e colar cuidadosamente cada cromo no seu espaço designado. Serei criança.
Não tenho outras crianças em casa além de mim. Isso significa que precisarei sair para a rua em busca de alguém para trocar minhas figurinhas repetidas. Talvez eu sente em um banco da praça e as coloque em jogo numa disputa de bafo. Ou me abaixe num canto da mesma praça e aposte tudo numa partida de bolita.
(...)

Quem quiser ler o texto completo, é só dar um pulo aqui.

sábado, 19 de junho de 2010

Ode a José Saramago

“Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?”
José Saramago (1922-2010), A Maior Flor do Mundo

Criou uma mulher que via por dentro da gente, ela olhou-o e disse, És puro e bom. Ele replicou, Não posso ser puro porque não há quem seja puro, e bom, há quem não concorde, pois polemizo. Voltou a mulher, Gostaria que houvesse mais polemizadores, ou mais desassossegadores, como dizes. Porém, sendo eu mesmo um desassossegado, não tenho descanso, Por que escreves, então, Tu o sabes quando me vês por dentro, assim como sabes que há coisas que não se explicam, apenas se sentem e se fazem. Ele se despediu com um olhar e voltou a mergulhar nos livros da biblioteca, mas a mulher insistiu, Ensina-me a escrever, Eu te criei para que visses, não para que escrevesses, Mas também eu quero desassossegar, Criei-te humana, portanto devias querer antes conforto que desassossego, És mais humano que eu, De nós dois, quem é o autor e quem a personagem, O criador é filho da criatura. A mulher então levou-o para ver o mar, o mar por onde tinham passado as caravelas, e insistiu, Sei que gostas do mar, Gosto de tudo que é caminho, principalmente os que não estão prontos, Por isso gostas do mar, Sim, gosto, E quando te fores por estes caminhos, quem vai escrever a tua elegia, ensina-me a escrever para que eu a escreva, Não gosto de elegias, Uma ode, então, Mas por que iria eu querer uma ode, por que iria querer sossego, Quem sabe o que podemos querer amanhã, não fosse o futuro o princípio do desassossego, Argumentas bem, Aprendi contigo, E se eu me recusar a que tu escrevas, Então te darei um barco, Por que um barco, Porque precisas procurar a ilha, tu bem o sabes, Que ilha, A ilha desconhecida, a ilha que terás e terei como ode, sonho e, enfim, sossego.


Escrito em lembrança de um dos escritores que mais me marcou. Ficou o estilo que lhe era peculiar. Muitos terão entendido as minhas referências neste pequeno ensaio; para quem quiser procurá-las, estão principalmente em Memorial do Convento e O Conto da Ilha Desconhecida.

Eduardo Trindade

domingo, 13 de junho de 2010

Poema do Dia de Santo Antônio


A vendedora de flores,
senhora dos sentimentos alheios,
queria tanto ganhar uma rosa!

Uma prenda anônima, ainda que fosse...


Texto e imagem (rapariga das flores em Ponta Delgada)
por Eduardo Trindade

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Do que aprendi com o mar

Um mundo.
Onde, de todos os dias iguais,
nenhum é igual ao outro. Ondas.
Maré e correntes, vai e vem, ficar, ir e voltar.
O mar. As portas do cais, sonhar, para onde?
O sal do azul que ensina a verter lágrimas,
lágrimas que ensinam a ter coragem.
Gaivotas. Voar? O mar, o ar.
E o vento. Sopro, brisa, as velas estendidas
como braços. Abraços.
Chuva, tempestade, noite e dia, dia após dia,
a pele curtida. O sol
e as cores do sol refletidas n’água.
Águas que espelham teus olhos.
Olhos onde ancorei meus sonhos,
os sonhos que aprendi com o mar.




versos e fotografia por Eduardo Trindade

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Carta

Hoje faz anos que te foste. Aniversarias. Comemoro? Certas datas não se comemoram, por mais marcantes que sejam, ou surpreendentes, ou inebriantes. Não me acostumei ainda ao silêncio da tua cadeira de balanço. Lembras como balançavas, e rangias, e fazias tremer o assoalho? É difícil se acostumar a certas ausências. Pensava que durarias para sempre, mas ensinaste que nada é para sempre. Ensinaste da maneira mais dolorosa.
Lembras-te das nossas brincadeiras? Eras criança em teu corpo de vovó. Eras a criança mais travessa dentre todos nós. Mas os adultos confiavam em ti, confiavam-nos a ti. Mal sabiam que rolavas conosco pelo chão, empanturrava-nos de doces e inundavas a casa em guerras d’água. Quando voltavam, tu inventavas histórias para tranquilizar os adultos! Éramos todos anjinhos.
És hoje o meu anjinho. Não sei, para falar a verdade, quando é o aniversário da tua partida. Sem tua presença, os dias se confundem. E eu, sem ter uma criança-adulta com quem brincar, acabei crescendo. Virei um adulto procurando em mim a criança que foste. Brinco em tua homenagem, faço traquinagens à semelhança de ti. Lembranças? Esforço-me para não esquecer, e de repente te ouço no rangido do assoalho quando atravesso a noite. Buscando me encontrar, reencontro-te.

Eduardo Trindade

terça-feira, 18 de maio de 2010

Entrevista no Ensaios em Foco

O Ensaios em Foco, da talentosa e simpaticíssima Talita Guimarães, está com uma série de reportagens sobre o prêmio Top Blog e acaba de publicar uma entrevista minha em que abordo as motivações para escrever, minha relação com a blogosfera e o prêmio em si. Deem uma conferida aqui!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Da espera

Não aprendi a esperar sentado.
Espero gesticulando,
ou com as mãos para trás e os pés frenéticos
andando em círculos e levantando poeira.
Espero impaciente.
Corro atrás para chegar na frente,
assim espero.
Às vezes, eu me desespero
de tanto esperar.
Esgoto a frase até desvendar as entrelinhas,
vasculho teus olhos em busca de um brilho
que não seja lágrima,
dos teus olhos espero.
Adormeço para poder sonhar,
sonho para poder despertar.
Desperto, espero
oferecendo flores, canções, cartas, passagens, viagens.
Porque vivo de criar minha própria esperança,
assim espero.


Eduardo Trindade

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Prêmio TopBlog

Alô, gente! Este nosso ponto de encontro virtual está concorrendo ao prêmio TopBlog 2010! Vocês já votaram? O link está aqui ao lado!

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Noite de Lua à Beira-Mar

Entornara num só gesto o trago que trazia na taça.
Esperava esquecer,
substituir de golpe a ressaca do grande amor
pela ressaca
dura e impessoal
da bebida.

Em vão.

Entregou-se então à ressaca das ondas da praia
a beijar enfim seu corpo
duro e impessoal
num último gesto de piedade
do mar.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Paisagem

Volto ao parque da minha infância.
As árvores, vejam só, ainda estão lá:
uma paineira, de repente, já desdentada,
pinheiros espalhados
e o aroma de eucaliptos.
Em tudo a mesma canção.

Um bosque de bambus vibra com o vento:
estala e range com o vento.
Parece a cantiga
antiga
agora renovada
dos barcos no cais querendo se soltar,
rangendo as amarras
em busca de novas melodias.


Poesia em Foco
Não percam a excelente resenha que a escritora e em-breve-jornalista Talita Guimarães elaborou sobre As Valsas Invisíves em seu blogue. E lembro que quem quiser adquirir um exemplar do livro, além de procurar nas livrarias, pode entrar em contato comigo.


Por Eduardo Trindade.
Fotografia no Parque da Redenção e versos neste e em outros recantos de Porto Alegre.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Éden

este texto na voz do autor



Em algum ponto da estrada perdemos nossa inocência.
Começamos bem, até. Queríamos ter tudo, queríamos ser tudo, e acreditávamos sinceramente que seríamos. Teríamos a felicidade. Continuaríamos brincando mesmo depois de adultos. Seríamos livres, educaríamos nossos filhos de maneira diferente, não poluiríamos o planeta nem seríamos tolerantes com a injustiça. Salvaríamos o mundo.
Rezaríamos todos os dias para o Papai e a Mamãe do Céu. Conversaríamos com nosso Anjo da Guarda.
Praticaríamos uma boa-ação todos os dias. Juramos ser bons.
Nossos juramentos eram coisa muito séria.
Juramos amar eternamente. Nunca haveria ninguém mais feliz, nem espelho mais perfeito que o casal que formaríamos. Amar seria natural, acreditar era fácil. Trocar olhares seria sempre motivo de orgulho. Inventaríamos novos carinhos. Faríamos sexo de um jeito só nosso, e seria bom e límpido como tudo era límpido e bom.
Teríamos um ao outro sem que o nosso ter significasse possuir.
Mas, em algum ponto da estrada, nós nos distraímos.
Faríamos muitos amigos e nos daríamos bem com todos eles, mas um dia nós nos descobrimos de cara amarrada.
Acabamos falando a frase errada na hora errada. Então, sacudimos os ombros, fora só uma frase. Nem percebemos que alguma poeira foi ficando pelo caminho.
Quisemos mudar para a fila ao lado porque ela parecia andar mais rápido. Certa vez, quando ninguém reparava, ousamos burlar a fila.
Sabíamos que Deus nos perdoaria.
Tínhamos tanta certeza de que Deus nos perdoaria que esquecemos Deus, esquecemos qualquer deus que pudéssemos ter.
Um dia, sentimos vergonha de nossos corpos. Cobrimo-nos. Culpamos a idade, as rugas, os cabelos desgrenhados.
Culpamos. Culpamo-nos.
Duvidamos de nós mesmos.
Tivemos medo de que o amor pudesse machucar. Sem perceber, impusemos condições ao amor.
Descobrimos que o medo pode machucar.
Quando a noite chegou, demoramo-nos decidindo o que fazer. E, ao concluirmos que precisávamos um do outro, era tarde, já estávamos distantes.
Agora buscamos, na estrada, a bifurcação onde nos separamos. O medo se instalou e dura mais que a noite, não sabemos se esperamos, voltamos ou seguimos. Talvez nossos caminhos se reencontrem, talvez o amor esteja lá atrás, na encruzilhada, em busca de uma segunda chance.
O remorso, com seus pés de curupira, quis tomar o lugar da esperança.
Mas, em algum lugar do coração, continuamos acreditando em nós como uma unidade, em nosso caminho como um caminho. E assim seguimos pela estrada, convencidos de que um dia, nunca tarde demais, descobriremos o que foi perdido, diremos o que não foi dito, e seguiremos, de mãos dadas, mais fortes e mais seguros para quando a noite voltar.

Eduardo Trindade

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Bolero, samba e silêncio


Já ouvira Iglesias, agora ouvia Caymmi. Este, uma excelente maneira de fingir felicidade.
Uma frase, uma única palavra mudaria o seu destino e o seu sorriso. Mas o telefone não tocava, o computador nem piscava, o carteiro não aparecia.
Resignou-se, tomou um pedaço de papel, escreveu, de si para si, a frase esperada.
Eu te amo.
E a noite chegou em silêncio, o samba esquecido no fundo de um beijo que não acontecera.

por Eduardo Trindade

sexta-feira, 19 de março de 2010

Estiagem

Esta pena com que escrevo é meu espinho,
estilete de luz que me caiu às mãos.
Este poema que escrevo, que escrevemos
(pois a vida é um pergaminho desenrolado aos nossos pés),
este poema é uma sangria,
antiquada e desesperada sangria.
Mas tem dias em que a pena seca:
em vão procuro o papel, a epiderme.
O que havia da vida coagulou há tempo,
petrificou-se. E faltam lágrimas...
As lágrimas são poucas
como a garoa que evapora antes de tocar o chão.
E, se um dia acordar da febre,
não louco nem suicida, apenas humano
— exageradamente humano —
o primeiro gesto que terei
será regar o jardim de girassóis
com as lágrimas, o sangue e o riso
que brotarão, sem que eu perceba,
da folha virgem de papel fecundada
pelo amor que eu tinha guardado para ti.

por Eduardo Trindade

segunda-feira, 1 de março de 2010

Piano

Tudo quanto espero agora é um grito.
O rasgo pungente de um choro
desadormecido na hora errada.
Calma, mãezinha, já vai passar.
Chora, criança, que o sono já vem.
Tudo que chove agora é incerto, é frio e vento.
Tudo que tento não me satisfaz agora.
Sendo redondo o mundo, todos os caminhos
levam ao mesmo caminho.
Tudo que é inverno agora
é o mais interno de mim.
Que bem me faria agora a indiferença,
a suave limpidez da voz de uma criança
atravessando o primeiro movimento
de uma sonata ao luar.

por Eduardo Trindade

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Desassossego

Fantasmas assombram a casa.
O vento ruge na varanda,
Cortinas dançam nos batentes.

É noite.

Silvos de outro mundo nas frestas,
Sombras percorrendo as paredes,
No peito uma sensação de não-sei-quê.

E o sono não vem.

Sonha? Dorme? Desperta?
Exausta a alma busca refúgio:
Voar, quase pensar, já não sentir.


por Eduardo Trindade

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Do viver impreciso

Amo o que me instiga. Se um livro me ameaçasse com sabedoria infinita, eu largaria o livro. Se me dessem a felicidade eterna, em busca de que eu correria todos os meus dias? Se me oferecesses um carinho inesgotável, eu o trocaria pela aventura de te reconquistar todos os dias. Solto tua mão para ver até onde vais, até onde vou, e fecho os olhos para adivinhar o gosto que terá nosso próximo beijo.



Texto e fotografia por Eduardo Trindade

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Andarilho


Construo estradas
com a poeira de meus sapatos
esquecido
do velho sonho da casa própria.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A virada

De repente, já é 2010. Admito que não participei com muito entusiasmo das comemorações que habitualmente cercam a virada do ano. Não que eu não tivesse nada para comemorar. Parece apenas que, mais do que em outros anos, eu não estava disposto a eleger, de maneira um tanto arbitrária, a noite de 31 de dezembro como símbolo quase mágico de que tudo vai melhorar instantaneamente. E, de qualquer maneira, nunca tive o costume de entrar madrugada adentro em festas de Ano Novo.
Certo, podem me chamar de antipático. Só digo em minha defesa que eu estava cansado, simplesmente. Assim como as pessoas anseiam por um momento de renovação, de passar a vida a limpo, de uma catarse coletiva em que é permitido esquecer os problemas e acreditar que amanhã será diferente, eu tive vontade de inovar – fugindo disto tudo.
E nem cheguei propriamente a fugir. Estive em Copacabana assistindo à queima dos fogos, estourei uma garrafa de espumante, abracei quem me abraçou. Até que me comportei bem, não? Só minha cabeça é que estava distante, pensando na minha cama, desejando ir para casa (e intimamente feliz por não ter de trabalhar no dia seguinte).
Há algum tempo, a gente se dava conta da virada ao longo dos primeiros dias do ano, preenchendo seguidos cheques com a data errada até se acostumar à mudança. Hoje temos cartões de crédito e de débito: o meio eletrônico nos roubou aquele processo manual de erros e acertos em que nos acostumávamos a escrever a data do novo ano. Em compensação, ainda temos agendas. Cumpri hoje meu ritual de passagem: transcrevi na agenda de 2010, novinha em folha, os meus compromissos para o ano que está começando.
Este ato de escrever na agenda nova é um pouco como iniciar um caderno na época do colégio. Eu tinha muita pena de gastar algo tão brilhante, ainda cheirando a loja... E me esforçava por caprichar na letra e na organização, embora fosse relaxando ao longo do ano. Sempre tive este apego um tanto sem sentido às coisas novas, um certo medo de vir a gastá-las. E nunca adiantou pensar que os objetos servem, mesmo, para serem usados. Dá-me pena ver que as coisas, por mais cuidado que se tenha com elas, vão perdendo o viço.
É um pouco o que acontece com o ano: este 2009, tão festejado há não muito tempo, vai-se embora sem que as pessoas demonstrem saudades. E agora, chegada a primeira segunda-feira de 2010, ocorre o inevitável: o ano que era novinho em folha aos poucos vai se amarelando de realidade e ganha as primeiras rasuras. Quem sentirá o mesmo apego por ele depois de perceber orelhas nas bordas e rasgos em algumas páginas? Talvez apenas aqueles que souberem sorrir ao identificar, num dos borrões, a caligrafia irônica de Mario Quintana: A Esperança é um urubu pintado de verde.

Esta crônica foi publicada n'O Globo de 04/01/2010. Mas, talvez para criar polêmica, o título foi alterado sem o meu consentimento! Por que será que tenho tanto azar com editores e revisores?