sábado, 2 de junho de 2012

Como Ana resolve palavras-cruzadas



Poema de Brana Petrović
traduzido do sérvio por Eduardo Trindade
Quais são suas intenções
quando todos os outros adormece
e apenas a mim desperta?

Tem Ana algum motivo
para assim tão bela dormir?

Respeito os poetas,
mas ressalvo:
ninguém pode
descrever a aparência
de sua pele escura.

Quando Ana chora
(eu não minto)
é mais bonita
que as frutas!
Que a chuva!
Que… caranguejos grelhados!
Que… o que quiserem!
Que pássaros a galope!
 E não é só uma frase de efeito
para enganar a Europa toda!

E quando se despe!
Livre e amaldiçoado observo
(e não sei como sobrevivo)
o grande milagre da luz!
Eu juro:
se te pudesse aquecer,
Ana, eu queimaria todos os teus ossos!

Quando desenha um barco! Quando semeia cevada!
Quando declara guerra! Quando ri!
Quando alimenta mariscos! Quando se resfria ao relento!
Quando lê uma bússola! Quando compra um novo vestido!
Quando bebe cerveja! Quando aparece do nada!
Quando idolatra líderes sindicais!

Quando é minha mão direita!
Quando é uma inscrição grega!
Quando sonha com flores!
Quando não quer!

A lembrança de uma criança inconcebível
sempre poderá substituir o fogo:
porque as nuvens são verdes para mim, tão verdes!
Tão intensas!

E quando as vozes se combinam!
Ó Deus,
minha cabeça se incendeia!

Eu posso nos lábios dela unir o mar e as flores!
Posso no país dela comandar a chuva!
Posso sob a janela dela imitar o Danúbio
ou alguns vulcões,
posso jurar
por tudo o que tenho,
e não tenho,
que o mundo existe por causa de Ana.

Quais são suas intenções
Quando todos os outros adormece
E apenas a mim desperta?

Tem Ana algum motivo
para ser tão bela quando dorme?

As flores, as serpentes, os ingleses,
todos já sabem:
ela ao beijar
cura todas as doenças!
Mas eu mais mais mais amo
quando ela liga os pontos,
quando resolve palavras-cruzadas.

Ela faz isso como se brincasse!
Parece que cria o mundo!
Qual o mais novo cavalo de Virgílio:
com uma mão segura o mundo,
com a outra o ilumina!
Procura, por exemplo, uma palavra
para beber como água,
para sussurrar,
subir,
voar,
e dormir.
Uma palavra que não é como as outras:
uma palavra para resolver palavras-cruzadas!

Então se produz o pequeno drama:
a água banha o litoral:
Ana, nua,
na palma da minha mão,
ó sonhada eternidade!
(Eu poderia apenas cuidar dela enquanto convalesce
ou dorme.)
Eeentretanto é tttão
perigoooso
ooo embbbalo
as pppppalavras
as palavras ssssse
estão resolvendo!

Quais são suas intenções
Quando todos os outros adormece
E apenas a mim desperta?

Por que enfim não se cobre quando dorme?


Nota:
Este é o primeiro texto de outra pessoa que publico aqui. Por que o publico? Primeiro porque, embora o autor seja o sérvio Brana Petrović (1937-2002), a versão em português é minha e, como bem sabe o meu amigo Arthura tradução de um poema pode ser obra tão grandiosa quando a criação de um poema. Este não é o caso (a versão original é bem mais musical, e é por isso que ela aparece lá em cima), mas ainda assim a divulgação vale a pena. Porque o poema é bonito, porque nós brasileiros (e lusófonos em geral) merecemos conhecer um pouco mais dessa cultura que é a dos Bálcãs e porque não encontrei na Internet versão alguma além da original. Espero que tenham gostado.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Quarto minguante

Hoje é dia de lua esguia no céu.
Falta um pedaço aqui dentro.

A mesa está posta, a noite pousada,
teu jogo de talheres e o prato preferido,
mas sou eu que me sirvo.

É dia de lua esguia no céu,
até a rua parou para ver
e o escuro fez silêncio lá fora.

Leio um livro. Penso num disco,
como são tristes as valsas
bailadas sozinhas na noite vazia.

É noite de lua esguia no céu,
procuro o pedaço de mim que tem o teu nome.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dos ponteiros

O relógio da sala bateu: duas horas. Quando era criança, havia na casa dos avós um grande relógio de armário, de pêndulo, e eu gostava de ficar vigiando a aparição pomposa do cuco. Mas não era uma obsessão como a de hoje.
Agora foi a vez do relógio de pulso, aqui do lado da cama. Cinquenta e oito, cinquenta e nove, duas horas. O relógio de pulso sobre o bidê - lá onde nasci chamávamos de bidê a este móvel que, aqui em terras cariocas, chamam de criado-mudo. Mas as palavras, sejam quais forem, não ajudam a madrugada a passar.
Duas da madrugada e ainda há algum ruído na rua, só aqui dentro é que faz silêncio. Não converso. Escrevo para as paredes, queria escrever nas paredes. Não tenho coragem para as coisas mais inofensivas. Quem vai reclamar do quarto rabiscado num universo que é só meu? O instinto que forjei quando criança - guri, para de escrever nas paredes! - ainda é muito forte. Instinto é uma coisa forte.
Eu é que sou fraco. Por isso estou sozinho e nem sequer as paredes me ouvem, por isso minha voz e meus punhos não conseguem dobrar a noite. Não tenho mais pressa. Duas e sete. Sou um maníaco. Melhor teria sido colecionar selos. Volto a lembrar do relógio dos avós. Pensando bem, é ridículo que o tempo seja marcado por um cuco que não envelhece. Ridículo ou cruel.
Passou um caminhão lá fora. Incrível como, aqui do sexto andar, posso acompanhar toda a vida da madrugada. Anteontem foi um casal que resolveu brigar em frente ao prédio. Não sei bem o que levou à briga, o que o rapaz terá dito ou feito, ou deixado de fazer; mas ouvi a discussão, os gritos, e imaginei a mulher indo sozinha nalguma direção e ele parado, as mãos no bolso. Por mais que a moça tenha partido sem o namorado, não saberá o que é solidão como a desse quarto, noite após noite.
Tenho uma parede de pregos nus. Arranquei os quadros, os porta-retratos, não me conformava em ser observado na minha intimidade. Nunca vi um filme de terror em que os retratos mexessem os olhos; os olhos dos retratos só se mexem nas caricaturas dos filmes de terror. Talvez tenha sido por isso que eu arranquei os quadros: medo de minha vida se transformar numa caricatura.
Caminho, abro a geladeira, procuro a garrafa d'água. No fundo, o que eu queria é encontrá-la vazia para assim completar a metáfora desta noite, mas a garrafa está pela metade. Sirvo um copo, bebo. Não bebo no bico da garrafa - outra vez o maldito instinto. O relógio da cozinha marca duas e quinze.
Penso num banho. Dispo-me, o pequeno prazer de largar as roupas pelo chão (aqui não chegou o instinto), ligo o chuveiro. Uma ducha fria, só a água a escorrer. Sempre gostei do barulho da água caindo, é pena que eu nunca mais tenha tomado banho de chuva.
Agarro a toalha, deixo o banheiro. Duas e trinta e três. Trinta e três, trinta e três, trinta e três. Nunca ergui bandeira nem tive pneumonia, eu devia ter tomado mais banhos de chuva.
Não sou o único a não dormir. Ouço barulho, em algum andar, alguém chamou o elevador. Autômato, olho para a porta.
Costumo deixar a porta destrancada, mas nunca me senti tão preso. O anjo exterminador. Não há grades. Não há grades como as que acorrentam a alma. Duas e trinta e oito. Parece que começou a chover. A janela está aberta, sinto um vento suave, cheiro de terra molhada, procuro nuvens. Quero voar.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A outra face do fruto

(Poema em preto e branco.)

No princípio era o verbo
e era bom.
Como foi que transformamos
nossa poesia
em pugilismo verbal?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Meio-tom

Calei-me durante muito tempo
enquanto falavas,
enquanto calavas
e quando extraías da minha boca
as palavras que eu não queria querer.

Matei poemas
(abortos clandestinos)
e neguei canções
(rebentos desconhecidos pelo pai)

mas sei que lias em mim
o que não tinha sido dito.

Agora da tua metralhadora de palavras e pontapés, ácido e chocolate,
machucando quando quer amar,
entregando-se apaixonada quando quer distância,

tu que também não sabias o que querias,

de ti
agora
(mais uma vez)
eu quero a vida inteira.
por Eduardo Trindade