quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Meninos da Pátria

Meninos sem rosto
nas sinaleiras
pedindo trocados,
agitando flanelas
como estandartes imundos,
meninos invisíveis
de mundos subterrâneos
inventando com laranjas
artes de circo
que não alimentarão
suas bocas famintas,
meninos do futuro
da pátria amada,
como esperar
a revolução silenciosa
se o prato é pouco
e a pátria, quase nada?



Lembrete: amanhã (sexta-feira) eu me despeço do Blog de 7 Cabeças aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O fim das coisas

Quando estou no chuveiro, volta e meia eu me deparo com um dilema: o sabonete, ao ser usado, vai diminuindo de tamanho, diminuindo, diminuindo, até que usá-lo se torna impraticável, embora ele teime em não desaparecer por completo. Daí a dúvida: até que ponto ainda é valido usar o sabonete? Questão aparentemente inócua, ainda mais que ela vem num momento em que não temos testemunhas, mas não por isso mais fácil de responder. Quando é, afinal, que acaba o sabonete? Quem já usou o sabonete até o final? E não me venham com a tática de grudar o restinho do sabonete anterior naquele sabonete novinho em folha, recém tirado da embalagem. Isso eu também faço, mas sempre me soa como uma leve trapaça...
Na escola, havia uma outra situação parecida: era quando a borracha, de tanto ser usada, ia diminuindo de tamanho até restar apenas um cotoco. Mas quando é que acabava a borracha? Tecnicamente, ela não acabava nunca, pois sempre sobrava um pequeno pedaço. Porém, havia um momento em que este pedaço, de tão pequeno, tornava-se impossível de ser manuseado. O que fazer, então, com aquele cotoco?
Por inércia, eu não fazia nada, e o resto de borracha continuava rolando em meu estojo e sobre a mesa. Um dia, um professor mais irônico me perguntou:
— É de estimação?
Talvez fosse e eu nunca tivesse me dado conta.
Por outro lado, há aquelas coisas que efetivamente acabam. A caneta bic, por exemplo. Bem, talvez não seja um bom exemplo: dizem as teorias de conspiração que as canetas bic misteriosamente não terminam nunca. Alguém aí já chegou ao fim de uma caneta bic? Sinto desapontar os conspiracionistas: as minhas canetas acabavam, sim. O que havia de misterioso era acompanhar a evolução do nível de tinta no interior do tubo, como um termômetro que parecesse imóvel mas, sorrateiramente, estava diminuindo semana após semana. Até chegar ao fim.
Voltando aos itens de higiene pessoal, eu devo ter alguma implicância com perfumes. Pois um frasco de perfume, na minha mão, dura anos. Não que eu seja econômico demais, pelo contrário. Simplesmente deve estar acima do meu entendimento o mecanismo que faz com que aquele minúsculo frasco, que eu uso todo dia, dure tanto tempo — até um ponto em que, de tão velho o perfume, a sua fragrância guarda quase nenhuma semelhança com a fragrância original... Nesta linha, um amigo meu ficava francamente chateado com as loções pós-barba que, segundo ele, duravam tempo demais: aquele frasco cheio do qual só usamos poucas gotas por dia representava, inegavelmente, um estoque desnecessário de produto. Nas palavras dele: dinheiro parado...
E as coisas que, embora teoricamente feitas para durar, sabemos ter os dias contados? Aqueles radinhos de pilha comprados na frente do estádio que raramente duravam mais que um único jogo de futebol. Os famosos guarda-chuvas de camelô que, quando não são abandonados pelo dono distraído em algum local incerto e não sabido, terminam seus dias escangalhados pelo uso. E que têm a particularidade de só dar a perceber o quanto é irremediável o estrago das varetas ou da costura no meio do aperto, ou seja, da tempestade. Antes assim. Encharcados ou não, todos sabemos que o fim de um guarda-chuva velho é o lixo. Mas ainda não me responderam: quando é que acaba uma borracha ou um sabonete?


Lembrete: amanhã, sexta-feira, tem publicação minha no Autores S/A e no Blog de 7 Cabeças.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Entre os Autores S/A

Autores S/A é um blogue que eu acompanho há algum tempo. Além da qualidade literária, um ponto que me atrai nele é um clima, como vou dizer, de sutil informalidade. Não que os textos e o próprio leiaute do blogue não sejam bem cuidados, nada disso. O que acontece é que os textos não são pedantes, e os comentários muito menos. Os comentários, aí é que está o ponto: bons comentários contribuem demais para um bom blogue, e os de lá são tão deliciosos quanto as próprias postagens. Culpa dos Autores que são, não tenho dúvida, excelente companhia.
Pois vejam só: fui convidado a colaborar com os Autores S/A! Fiquei feliz e honrado com o convite, e nem poderia ser diferente. Pois então está combinado: procurem-me lá sempre às sextas-feiras, espero não decepcioná-los. Começo hoje, com um pequeno conto.

Ah, e hoje também tem Blog de 7 Cabeças. Vejo vocês por lá!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Abbey Road


Um amigo telefonou perguntando se eu queria ganhar a discografia completa dos Beatles. Perguntei como. Ele respondeu que bastava tirar uma foto.
Como assim?
Tratava-se de um concurso, a fotografia que aludisse de forma mais criativa à capa do Abbey Road ganharia os tais discos. E meu amigo tinha uma ideia infalível.
Bem, os planos dificilmente são à prova de falhas, tanto é que não vencemos o concurso. Mas a ideia era mesmo boa e a fotografia, modéstia à parte, ficou muito criativa, para dizer o mínimo. O que acham?

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Entre as sete cabeças

Preconceito mitológico: tivesse sete vidas, seria um gato; mas, com sete cabeças, chamavam-lhe monstro.
Durante o mês de novembro, sempre às sextas-feiras, estarei escrevendo no Blog de 7 Cabeças. O convite partiu da Marina, que eu terei a honra e a responsabilidade de substituir temporariamente.
Acompanho o blog há algum tempo e já fiz uma "participação especial" com a frase acima, que foi a vencedora do concurso que as "7 cabeças" organizaram no mês de aniversário. Agora estarei lá para valer, ainda que como interino. Então... vamos ao poema de hoje aqui.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A primeira viagem

Minha mãe tinha uma coleção de selos.
Ainda criança, eu adorava me sentar e me desligar do tempo, simplesmente vendo as mil coisas contidas naqueles pequeninos pedaços de papel. A princípio, o que me atraía eram as cores dos selos que tinham como motivo animais, a natureza em geral, obras de arte, meus ídolos ou simplesmente figuras do imaginário infantil. Os personagens de Monteiro Lobato, o milésimo gol de Pelé... Ao mesmo tempo, eu tinha uma admiração respeitosa pela idade de alguns selos do começo daquele século. Parecia incrível para mim ter contato com algo tão antigo.
Logo passei a me aventurar no álbum que havia repleto de selos de várias dezenas de países. Era um desafio: tantas línguas, tantas diferenças de estilo que eu sequer sabia a que se deviam... Aquilo, sim, me fascinou. Eu olhava para os diferentes alfabetos e tentava adivinhar as misteriosas inscrições que designavam selos sovitéticos, indianos, japoneses. Mesmo quando se tratava do alfabeto que eu julgava conhecer, que diabos estava escrito naqueles selos finlandeses e alemães? Minha curiosidade se aguçava cada vez mais, assim como minha vontade de pesquisar e descobrir. Ah, que alegria foi quando consegui associar com segurança aquelas “cobrinhas” do alfabeto devanagari à Índia! Quando descobri a diferença entre aqueles selos chineses e os japoneses!
Eu era um pequeno personagem de Júlio Verne. A volta ao mundo em incontáveis selos.
Os selos que minha mãe guardava foram minha primeira grande viagem.
Um dia, eu descobri que a coleção ia somente até o ano de meu nascimento. Nem seria de se espantar: naquele ano, a rotina da casa deve ter sofrido uma reviravolta com a minha chegada, ou seja, a chegada do primeiro filho. Bem, confesso que poderia ter me sentido ligeiramente culpado com essa descoberta: quantas viagens deixaram de acontecer por minha conta?
Depois, eu entendi: aquele ano foi, na verdade, o início de novas viagens.
E cada nova viagem tem sempre aquele gosto de descoberta; o espírito de Júlio Verne, à sua maneira, continua forte até hoje.