segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cena de Verão

Este suor que escorre pelo rosto e evapora antes que possamos enxugá-lo, esta areia que gruda no corpo, esta brisa que parece nunca ser suficiente, esta vontade de esquecer as horas. Esta praia. Este óculos que usas e onde vejo meu rosto, eu que preferiria vê-lo refletido em teus olhos. As crianças mais adiante jogando bola e a minha apreensão por um chute mal dado que possa te acertar. O romance policial deixado de lado, como ler na praia? Os corpos exuberantes por todos os lados. Tão exuberantes e abundantes, tão monótonos. Tua pele branca e a minha preocupação com os raios ultravioleta, o buraco na camada de ozônio. Tua pele deliciosamente mais bonita que a de qualquer mulata, pele autêntica. O pregão de um vendedor de picolés que derretem antes do fim. Um velhinho que passou e olhou para teu corpo, um velhinho que me encheu de ciúmes — todo cuidado é pouco! Um homem assumidamente ciumento, eu. Inseguro, sim. Seguraria teu pulso para apontar o avião que desenha corações lá no alto. Mas dormes. Um sonho de verão? O relógio no teu pulso, o ponteiro e as horas que não deviam passar nunca. A maré que sobe, teus pés molhados, levantas-te de súbito. Assustada com a hora, já é tarde! Vais-te embora às pressas, recolhendo toalha e chinelos e teu corpo assumidamente branco. Nem olhas para mim, esquecido e inofensivo. Julgas que não me conheces. Voyeur? Eu te amaria antes de te conhecer, mas li o verão inteiro no teu pulso, agora ficou tarde.

Recados
1. Lembro que este pequeno conto, como a maioria dos meus textos, é uma obra de ficção.
2. A votação do TopBlog se encerrou e eu agradeço profundamente a todos que contribuíram para colocar este cronista virtual entre os finalistas. Obrigado mesmo!
3. Como forma de agradecimento e também como mimo aos leitores (os fiéis e os não tão fiéis, que este blogue é como coração de mãe), pretendo fazer uma promoção para distribuir três livros. Aguardem! E aos que tiverem sugestões sobre como deve ser a promoção, por favor me escrevam!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Todas as cartas de amor


Juntei os cacos de palavras, os restos de páginas partidas, as sobras de frases nunca ditas. Uni, colei e aproximei com vírgulas, preposições, conjunções e até com adjetivos (todas as cartas de amor são ridículas). E reticências. Preenchi os espaços vazios com reticências como, nos mapas antigos, as figuras de seres fantásticos cobriam as áreas ainda não exploradas pelos navegadores. Tanto a descobrir, tanto a ser dito, e eu me perdendo em devaneios. Distraí-me com arabescos no canto da folha enquanto esperava o telefonema, a noite, a inspiração. A coragem não veio e o silêncio não ajudou. No escuro, atabalhoado, deixei que fossem ao chão as peças do quebra-cabeça. O vento levou, a poeira cobriu, o tempo comeu e nunca ficaste sabendo. A gaveta amarelou o que nunca lancei ao ar, ao mar. Como nunca me lancei a teus braços. As rimas soltas não chegaram a se encontrar, a semente que poderia ter florescido adormeceu no mofo de um quarto sem luz enquanto, lá fora, ias rindo pela rua, mãos e lábios unidos a alguém que escrevia menos e agia mais. Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Eduardo Trindade,
com citação de Álvaro de Campos

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da Origem das Espécies

Aviões a jato,
teleconferências,
Internet
(MSN, twitter, facebook e afins),
o universo
numa casca de noz,
três dimensões,
quatro dimensões,
realidade virtual...

Sim, está fundada uma nova espécie:
exultemos,
vivemos a era
do Homo virtualis.

Explosão demográfica,
ruas e calçadas
tão cheias de gente,
do novo Homo virtualis.

E as pessoas se esbarrando
presas no trânsito,
presas da rotina
(faminto tigre dente-de-sabre pós-moderno),
as pessoas batalhando
pela conexão nossa banda-larga de cada dia
e pelos domingos na praia
(congestionada de guarda-sóis),
essas pessoas
(orgulhoso Homo virtualis pós-moderno)
já não conhecem o que seja
humano de verdade.

Texto: Eduardo Trindade
Fotografia: Charles Chaplin em
Tempos Modernos

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Uma noite com Paul McCartney

Qual a ultima vez em que fizeste algo pela primeira vez? Eis talvez minha pergunta preferida. Não que se deva evitar a rotina a todo custo, mas muitas vezes é saindo da rotina que se degusta a vida, incluindo a própria rotina.
Pois ontem, primeira e única noite, eu assisti ao espetáculo de Paul McCartney em Porto Alegre.
Muita gente dirá que fui um privilegiado. Exagero de fã? Ora sim, depois desta noite, não tenho duvida de que estar lá foi mesmo um privilégio. Então, deem licença a este paperback writer virtual para contar a sua história...
Comecemos pelos meus antecedentes. Modestos. Não nasci numa família particularmente beatlemaníaca. Lá em casa, ouvia-se Beatles com moderação. Na adolescência, comecei a me interessar mais, seguindo meu estilo (irremediavelmente nostálgico) de ter saudades até do que não vivi. Ouvia as músicas, lia as histórias (curioso que sempre fui), sem exageros. Mesmo assim, quem me conhece há mais tempo já me ouvia dizer que, pouco afeito aos megashows, de todos os artistas possíveis, se havia um que eu gostaria de ver, este artista seria Paul McCartney.
Falava isso como um desejo distante até o dia em que a possibilidade se tornou real com o anúncio da vinda dele para o Brasil, e mais que isso, para Porto Alegre.
Não vou detalhar a expectativa até conseguir os ingressos, nem a espera na fila, nem outras histórias que, sozinhas, já renderiam boas crônicas. Tudo pré-histórias a partir do momento em que Sir Paul subiu ao palco.
Não se trata apenas de uma veneração fanática, mas da personificação de momentos que aquelas músicas simbolizam, daí a força que McCartney tem ainda hoje. Verdade que foi uma noite com direito a todo tipo de fãs exaltados. O que chega a ser curioso. Quem vê as imagens das meninas histéricas na década de 1960 pode não se espantar de que as filhas e netas daquelas meninas sigam tendo a mesma exaltação adolescente... mas pelo mesmo ídolo? Um grupo de gurias atrás de mim dava um espetáculo à parte de beatlemania, cantando, exaltando-se, gritando — Lindo, lindo! Ah, não acredito, não acredito, ele está ali, estamos vendo ele! — Histeria não por um ídolo teen, mas por um senhor de quase 70 anos.
E também o orgulho da terra, presente em qualquer canto do planeta e particularmente exaltado nos arredores do Guaíba. Cheguei à conclusão de que eu não trocaria o palco do Gigante da Beira-Rio sequer por outro em Liverpool. Lá o beatle estaria em casa, mas aqui eu é que estava em casa, éramos os anfitriões. E não vou disfarçar a alegre surpresa de ouvir Paul McCartney falando um português extremamente fluido para um súdito da rainha. Mais do que isso: se já tinha conquistado o publico bem antes de arriscar um "bah, tchê!" e de elogiar a plateia com sucessivos "trilegal", beirou o inacreditável ao cantar junto conosco "Ah, eu sou gaúcho!" (para os de fora, esclareço que se trata da versão local de " Ah, eu tô maluco!", bastante cantada nos estádios porto-alegrenses). Neste ponto, Paul se juntou ao Papa João Paulo II, ainda hoje lembrado por tomar chimarrão e cantar "Ucho, ucho, ucho, o papa e gaúcho". Sim, temos um orgulho um tanto provinciano, porém encantador (modéstia à parte). O que seria do todo se não fosse cada uma das particularidades que lhe dá brilho?
Não achei que fosse chegar ao ponto de verter lágrimas, mas bastaram os primeiros acordes de Hey Jude, música que toquei inúmeras vezes em meu tempo de pianista, para que eu sentisse os olhos úmidos. Sou um grande chorão. Não o único: à minha direita, outro marmanjo estava aos prantos. As meninas atrás de mim... Estas já choravam há muito tempo.
Melhor que tudo, porém, o sorriso das pessoas. Foi uma noite de sorrisos escancarados — de incredulidade, de satisfação, de sonho realizado — porque não havia dúvida de que cada pessoa ali tinha uma história particular envolvendo aquelas canções, e ouvi-las da maneira que ouvimos ontem vai muito além de gostar das músicas, de Paul ou dos Beatles; é como tocar com os dedos em parte do imaginário coletivo e individual, e sentir, de uma maneira quase boba, que aquelas canções ouvidas desde a infância despertam sensações e lembranças, dão vida a momentos que não é preciso explicar a ninguém.
Quando Paul anunciou, em português límpido, que tocaria uma música composta em homenagem a “minha gatinha Linda” e a dedicaria aos casais de namorados presentes... Verdade que, nesta hora, faltou alguém comigo a quem abraçar. Mas enquanto via minha mãe, que me acompanhou até ali com a felicidade estampada no rosto, eu tinha certeza de que aquela noite única valia a pena.
É por toda esta carga emotiva que o espetáculo de ontem foi inesquecível. O mundo pode produzir outros músicos excelentes e outras canções geniais, mas dificilmente algum conseguirá ter tanta ligação com a história particular de tanta gente: não uma ou duas, mas dezenas de músicas marcantes, esta por lembrar um filme, aquela, um beijo, a outra, um verão na praia, outra ainda, os domingos em família... Posso dizer, sem medo do exagero, que foi o show da minha vida. E quem estava lá, depois da noite de ontem, nunca mais ouvirá uma canção dos Beatles da mesma maneira.

Eduardo Trindade

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Há vaga

No choro compulsivo
da criança
do andar de cima
descubro
o quanto anda
vazio
o meu apartamento.










versos e fotografia por Eduardo Trindade