sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Feira do Livro

Começou hoje a 54a. Feira do Livro de Porto Alegre. Para os gaúchos, a Feira dispensa apresentações. Para os de fora, digo que se trata, provavelmente, do maior e mais duradouro evento do tipo no Brasil. Nada que se compare às bienais. A Feira é uma festa progamada sob medida para aproximar leitores, livros e escritores.
Para começar, ela acontece na Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre, local de grande circulação de pessoas. As editoras, livrarias e demais expositores não se organizam em estandes, mas em bancas de todo o tipo - ordenadas ou caóticas, intimistas ou mais formais. Eu disse bancas - afinal, é uma feira.
E há os jacarandás. Árvores que poderias ser consideradas um dos símbolos da cidade, os jacarandás estão por toda a praça. Florescem na primavera, anunciando de forma magnífica a chegada desta estação - e, é claro, da Feira do Livro.
Acredito que todo porto-alegrense que se preze coleciona ao menos algumas histórias sobre a Feira. Eu, é claro, tenho as minhas - trata-se de uma longa relação com a praça e com a leitura.
Agora, mais uma Feira e mais uma história. Pois, pela primeira vez, freqüentarei a praça como autor publicado. Mais do que isso: meu livro estará lá, e eu darei uma sessão de autógrafos! Se a ansiedade já seria natural, desta vez está muito maior. Se a praça poderia ser lugar de cruzar com amigos, mais do que nunca quero fazer o convite para encontrá-los lá!
.
O quê: sessão de autógrafos de As Valsas Invisíveis, de Eduardo Trindade
Onde: Praça de Autógrafos da Feira do Livro de PoA, entre o MARGS e o Memorial do RS
Quando: 14/11/08 (sexta-feira) às 15:30
O livro: também poderá ser encontrado, durante a Feira, na banca da AGEI, perto do Santander Cultural
.
Sobre a fotografia: não é a Praça da Alfândega, claro, mas resolvi homenagear um de meus escritores favoritos publicando esta imagem da Casa de Cultura Mario Quintana, instalada no antigo hotel onde morou o poeta. A Casa de Cultura pode ser visitada em um passeio a pé a partir da Praça.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Praça


Colocaram a estátua de um poeta no banco da praça.
Tão próximo da população.
Imóvel,
distante como nunca estivera em vida.

Vieram as pombas ciscando em seu chapéu.
Caíram as flores dos jacarandás sobre os ombros.
Passaram os sóis, as luas,
chuvas e cerrações.
À noite, as prostitutas o ignoraram solenemente.
De dia, os passantes nem reparavam,
mas crianças se aninhavam
em seu colo de metal.

Alguém levou os óculos esculpidos,
arte de quem não enxerga.

Ficaram-lhe os olhos de estátua:
ninguém sabe, mas o poeta via,
no outro lado da praça,
o casal de velhinhos
abraçados
– de braços dados
com o passar dos anos.

por Eduardo Trindade

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Bolo de chocolate


Sim, seu moço, o senhor não vai fazer a desfeita de recusar o meu bolo de chocolate, não é? Este bolo é famoso, minhas irmãs sempre disseram que eu era a mais talentosa na cozinha. E as minhas colegas sempre disputavam cada pedaço quando eu levava um pouco para elas, o senhor precisava ver.

Mas, como eu ia lhe dizendo, era raro a gente poder servir uma mesa farta assim lá na minha cidade. Não tinha luxo. A vida era mais simples. Mas a cidade mudou tanto, tanto... Quase nem reconheço.

Lembro que a cidade, mesmo, era só três ruas. Asfalto não tinha. Aquelas casinhas coloridas. E todas com um quintal grande, sempre, e bem cuidado. Ah, dava gosto ver. Mas mudou muito, sabe. A cidade cresceu demais. Inchou. Não parece mais a cidade da minha infância. Agora já faz tempo que tem água encanada, mas eu lembro que cada casa tinha o seu poço. Era do poço que a gente tirava a água. E era uma água pura, sim, que a gente sabia de onde vinha. Não tinha mistério. Era mais simples, como lhe falei.
Também não tinha essas modernidades de luz elétrica. Hoje parece que ninguém vive sem ela, mas, na minha época, a gente vivia. Os postes eram com lampião, sabe? Toda noite, ficava aquele cheiro na rua, dos lampiões. Mas ninguém se importava, até porque íamos nos recolher cedo. Depois instalaram um gerador na cidade. Foi então que pudemos ter rádio. Ah, mas o gerador só funcionava até as dez horas. Depois, era silêncio. Também, nosso pai desconfiava um pouco disso tudo. Mas nossa mãe nunca se importou com o rádio. Ela gostava era das canções que tinha ouvido da mãe dela e que repetia para a gente. Era tão bonito! O senhor quer ouvir?

Ah, antes deixa eu lhe preparar uma xícara de chá, o senhor aceita, seu moço? Ou prefere um suco? Estas laranjas aqui eu recém trouxe da feira, posso espremer num instante. Hummm, não precisa, um chá é suficiente, não é? Bom, mas como eu dizia, tinha canções tão bonitas! Algumas eram trágicas, mas mesmo assim eram bonitas. Eu gostava quando falavam de amor... Uma mulher, uma vez, se jogou do alto da pedra e foi cair direto no mar. Ela esperava o namorado, que era barqueiro, mas o rapaz chegou com outra e ela viu. Lá do alto da pedra. A canção diz isso. A pedra, o senhor sabe, à esquerda, chegando na cidade. Até hoje tem uma cruz lá no alto, é por causa dessa mulher.

Eu aprendi a cantar assim foi com minha mãe, desde cedo. Ela tinha uma voz tão bonita! E eu também, sabe, gostava de cantar desde pequena. Houve uma época que o rádio fazia uns concursos com as meninas lá do grêmio, sabe, e eu cheguei a tirar primeiro lugar. Eu sempre ganhava alguma coisa; os prêmios eram pacote de macarrão, pacote de bolacha. Aí, eu ia para casa toda orgulhosa.

O gostoso, também, era quando resolviam fazer uma serenata. Hoje em dia, ninguém mais faz serenata, o senhor sabe. Uma tristeza. Mas naquela época... Nem sempre dava certo: uma vez, meu avô descobriu um moço que vinha fazer serenata na nossa janela. O pobrezinho voltou para casa molhado e sem cantar... E virou assunto na cidade.

Porque todo mundo sabia de tudo, sabe? Eu, certa vez, começaram a me chamar de Sabiá. Porque eu vivia cantando, e por causa dos concursos. Depois eu parei, só cantava em casa, para os conhecidos.

Mas aí foi na época em que um moço começou a me visitar, o senhor entende? Um moço muito direito, minha família toda gostava muito dele. E ele gostava de bolo de chocolate. Desde uma vez em que minha mãe tinha feito bolo de chocolate e ele adorou. Mas, na mesa, ele não tirava os olhos de mim. E eu ficava arrepiada quando ele me olhava...

Foi então que eu aprendi a fazer bolo de chocolate. E ele continuou gostando cada vez mais...

Ainda tenho tanta saudade do pai das minhas filhas, sabe? Mas a vida mudou tanto! Quase nem me reconheço.

Ah, está satisfeito? Quer mais bolo? Pode ficar à vontade, seu moço, tem coisas que não mudam. Está vendo como minha filha não tira os olhos dos seus?
texto e fotografia por Eduardo Trindade

domingo, 19 de outubro de 2008

De pontes e de balsas


Punha-se a pensar durante horas,
indeciso.

Quem viajaria mais longe:

As balsas infatigáveis
que desciam o rio?

Ou as pedras imóveis
da ponte sobre o rio
que, nos pés de tantos andarilhos,
conheciam lugares nunca sonhados?

Nas viagens das balsas
o sonho das pedras...
E se o sonho das balsas
fosse descansar um dia?

Os dias passavam,
indo e vindo,
embalados pela velha inquietude humana.
fotografia e palavras por Eduardo Trindade

sábado, 11 de outubro de 2008

Pequeno Conto Diluído

Assistia à lenta difusão das folhas de chá na xícara.

Queria que o telefone tocasse, mas ele não tocava nunca. A televisão ligada disfarçava o silêncio.

No quarto, uma criança começava a esquecer o rosto de seu pai.

A água do chá se coloria em contato com as folhas.

Queria esquecer tudo. Lavar com aquela água quente as dores recentes. Mas a água estava quente demais, as dores eram recentes demais, e seus dedos queimavam.

Já se esquecia do jeito que o marido tinha de partir o bolo com as mãos, dos farelos que caíam e das discussões inúteis pelos farelos espalhados. Mas não queria se esquecer do chá repartido nas tardes de sábado – acompanhamento silencioso das brigas pelo controle remoto.

Por que aquele futebol de domingo à tarde na televisão sempre a irritara tanto? Agora, era com saudade que se lembrava dos gritos de gol que ecoavam pela casa.

No fundo da xícara, restava um punhado de folhas inúteis. Folhas que formavam o desenho de não-vês-que-sinto-a-tua-falta? Sentimento que insiste em não se diluir.

Mas o fantasma que se difunde nas frestas da porta e da memória está cada vez mais distante. Sabe que ele não voltará.

Para disfarçar o silêncio, coloca mais açúcar no chá.

Um grito de gol se espalha na televisão. Mas o telefone, como o coração, continua mudo.

palavras e imagem por Eduardo Trindade

sábado, 4 de outubro de 2008

Canção de mim e de ti

Como quem caminha sem rumo
Caminho para ti.

A flor do poema se abriu
E, com ela, as cores
E os espinhos do dia.

Como quem amanhece sozinho
Amanheço em ti.

A primeira nuvem do dia
É pequena, branca, fofa
E também nublada.

Como quem sonha acordado
De espada em punho
Sonho para ti.

Quantos dragões ainda
Será preciso vencer?

Como quem ama baixinho
Afasto-me de ti.

A canção que sussurra agora
É flor, poema, nuvem, espada.

Como quem enlouquece devagarzinho
Entrego-me a ti.

versos e fotografia por Eduardo Trindade