Assistia à lenta difusão das folhas de chá na xícara.
Queria que o telefone tocasse, mas ele não tocava nunca. A televisão ligada disfarçava o silêncio.
No quarto, uma criança começava a esquecer o rosto de seu pai.
A água do chá se coloria em contato com as folhas.
Queria esquecer tudo. Lavar com aquela água quente as dores recentes. Mas a água estava quente demais, as dores eram recentes demais, e seus dedos queimavam.
Já se esquecia do jeito que o marido tinha de partir o bolo com as mãos, dos farelos que caíam e das discussões inúteis pelos farelos espalhados. Mas não queria se esquecer do chá repartido nas tardes de sábado – acompanhamento silencioso das brigas pelo controle remoto.
Por que aquele futebol de domingo à tarde na televisão sempre a irritara tanto? Agora, era com saudade que se lembrava dos gritos de gol que ecoavam pela casa.
No fundo da xícara, restava um punhado de folhas inúteis. Folhas que formavam o desenho de não-vês-que-sinto-a-tua-falta? Sentimento que insiste em não se diluir.
Mas o fantasma que se difunde nas frestas da porta e da memória está cada vez mais distante. Sabe que ele não voltará.
Para disfarçar o silêncio, coloca mais açúcar no chá.
Um grito de gol se espalha na televisão. Mas o telefone, como o coração, continua mudo.
7 comentários:
Belíssimo conto! Vou linkar seu blog, ok?
Edu,você sempre me impressiona!
é engraçado como a cansativa rotina pode nos trazer saudades outrora. como um ato irritante pode ser suportável e até amado, se é feito por quem cativamos.
muito bom!
beeijo
Nas águas do chá não se diluem as saudades, as recordações... muito bom seu blog. Abraço
Todas as tuas palavras me tocam...
Sutil e delicado,
porém sem perder a profundidade.
Gosto muito.
Edu, finalmente lhe encontro no diHITT! É um enorme prazer ler o que escreve!
Como dói sentirmos falta de alguém, ainda mais se este alguém realmente é especial!
Bjs
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