sábado, 11 de outubro de 2008

Pequeno Conto Diluído

Assistia à lenta difusão das folhas de chá na xícara.

Queria que o telefone tocasse, mas ele não tocava nunca. A televisão ligada disfarçava o silêncio.

No quarto, uma criança começava a esquecer o rosto de seu pai.

A água do chá se coloria em contato com as folhas.

Queria esquecer tudo. Lavar com aquela água quente as dores recentes. Mas a água estava quente demais, as dores eram recentes demais, e seus dedos queimavam.

Já se esquecia do jeito que o marido tinha de partir o bolo com as mãos, dos farelos que caíam e das discussões inúteis pelos farelos espalhados. Mas não queria se esquecer do chá repartido nas tardes de sábado – acompanhamento silencioso das brigas pelo controle remoto.

Por que aquele futebol de domingo à tarde na televisão sempre a irritara tanto? Agora, era com saudade que se lembrava dos gritos de gol que ecoavam pela casa.

No fundo da xícara, restava um punhado de folhas inúteis. Folhas que formavam o desenho de não-vês-que-sinto-a-tua-falta? Sentimento que insiste em não se diluir.

Mas o fantasma que se difunde nas frestas da porta e da memória está cada vez mais distante. Sabe que ele não voltará.

Para disfarçar o silêncio, coloca mais açúcar no chá.

Um grito de gol se espalha na televisão. Mas o telefone, como o coração, continua mudo.

palavras e imagem por Eduardo Trindade

7 comentários:

Sidarta disse...

Belíssimo conto! Vou linkar seu blog, ok?

Anônimo disse...

Edu,você sempre me impressiona!

Nicole M Marcio disse...

é engraçado como a cansativa rotina pode nos trazer saudades outrora. como um ato irritante pode ser suportável e até amado, se é feito por quem cativamos.
muito bom!

beeijo

Dani Santos disse...

Nas águas do chá não se diluem as saudades, as recordações... muito bom seu blog. Abraço

Thaís Butterfly εїз disse...

Todas as tuas palavras me tocam...

Cotidianos disse...

Sutil e delicado,
porém sem perder a profundidade.
Gosto muito.

BLOGZOOM disse...

Edu, finalmente lhe encontro no diHITT! É um enorme prazer ler o que escreve!

Como dói sentirmos falta de alguém, ainda mais se este alguém realmente é especial!

Bjs