Sim, seu moço, o senhor não vai fazer a desfeita de recusar o meu bolo de chocolate, não é? Este bolo é famoso, minhas irmãs sempre disseram que eu era a mais talentosa na cozinha. E as minhas colegas sempre disputavam cada pedaço quando eu levava um pouco para elas, o senhor precisava ver.
Mas, como eu ia lhe dizendo, era raro a gente poder servir uma mesa farta assim lá na minha cidade. Não tinha luxo. A vida era mais simples. Mas a cidade mudou tanto, tanto... Quase nem reconheço.
Lembro que a cidade, mesmo, era só três ruas. Asfalto não tinha. Aquelas casinhas coloridas. E todas com um quintal grande, sempre, e bem cuidado. Ah, dava gosto ver. Mas mudou muito, sabe. A cidade cresceu demais. Inchou. Não parece mais a cidade da minha infância. Agora já faz tempo que tem água encanada, mas eu lembro que cada casa tinha o seu poço. Era do poço que a gente tirava a água. E era uma água pura, sim, que a gente sabia de onde vinha. Não tinha mistério. Era mais simples, como lhe falei.
Também não tinha essas modernidades de luz elétrica. Hoje parece que ninguém vive sem ela, mas, na minha época, a gente vivia. Os postes eram com lampião, sabe? Toda noite, ficava aquele cheiro na rua, dos lampiões. Mas ninguém se importava, até porque íamos nos recolher cedo. Depois instalaram um gerador na cidade. Foi então que pudemos ter rádio. Ah, mas o gerador só funcionava até as dez horas. Depois, era silêncio. Também, nosso pai desconfiava um pouco disso tudo. Mas nossa mãe nunca se importou com o rádio. Ela gostava era das canções que tinha ouvido da mãe dela e que repetia para a gente. Era tão bonito! O senhor quer ouvir?
Ah, antes deixa eu lhe preparar uma xícara de chá, o senhor aceita, seu moço? Ou prefere um suco? Estas laranjas aqui eu recém trouxe da feira, posso espremer num instante. Hummm, não precisa, um chá é suficiente, não é? Bom, mas como eu dizia, tinha canções tão bonitas! Algumas eram trágicas, mas mesmo assim eram bonitas. Eu gostava quando falavam de amor... Uma mulher, uma vez, se jogou do alto da pedra e foi cair direto no mar. Ela esperava o namorado, que era barqueiro, mas o rapaz chegou com outra e ela viu. Lá do alto da pedra. A canção diz isso. A pedra, o senhor sabe, à esquerda, chegando na cidade. Até hoje tem uma cruz lá no alto, é por causa dessa mulher.
Eu aprendi a cantar assim foi com minha mãe, desde cedo. Ela tinha uma voz tão bonita! E eu também, sabe, gostava de cantar desde pequena. Houve uma época que o rádio fazia uns concursos com as meninas lá do grêmio, sabe, e eu cheguei a tirar primeiro lugar. Eu sempre ganhava alguma coisa; os prêmios eram pacote de macarrão, pacote de bolacha. Aí, eu ia para casa toda orgulhosa.
O gostoso, também, era quando resolviam fazer uma serenata. Hoje em dia, ninguém mais faz serenata, o senhor sabe. Uma tristeza. Mas naquela época... Nem sempre dava certo: uma vez, meu avô descobriu um moço que vinha fazer serenata na nossa janela. O pobrezinho voltou para casa molhado e sem cantar... E virou assunto na cidade.
Porque todo mundo sabia de tudo, sabe? Eu, certa vez, começaram a me chamar de Sabiá. Porque eu vivia cantando, e por causa dos concursos. Depois eu parei, só cantava em casa, para os conhecidos.
Mas aí foi na época em que um moço começou a me visitar, o senhor entende? Um moço muito direito, minha família toda gostava muito dele. E ele gostava de bolo de chocolate. Desde uma vez em que minha mãe tinha feito bolo de chocolate e ele adorou. Mas, na mesa, ele não tirava os olhos de mim. E eu ficava arrepiada quando ele me olhava...
Foi então que eu aprendi a fazer bolo de chocolate. E ele continuou gostando cada vez mais...
Ainda tenho tanta saudade do pai das minhas filhas, sabe? Mas a vida mudou tanto! Quase nem me reconheço.
Ah, está satisfeito? Quer mais bolo? Pode ficar à vontade, seu moço, tem coisas que não mudam. Está vendo como minha filha não tira os olhos dos seus?
texto e fotografia por Eduardo Trindade