domingo, 30 de janeiro de 2011

Como se fosse primavera

Uma das coisas que me atraem em Porto Alegre é que a cidade gira em torno dos parques. Parques e praças. Detalhe bobo, talvez, mas é nestes recantos, transformados em áreas de convívio, que nós porto-alegrenses nos reunimos para uma caminhada e um chimarrão – pretexto perfeito para todo tipo de encontro e de conversa. Coisa boa estar assim. Um chimarrão. Nos parques e praças de Porto Alegre.
Que, por sua vez, giram em torno das árvores. Mas as árvores não se restringem a estes espaços, estão esparramadas pelas ruas. Bairros de calçadas largas, muitas delas íngremes (ruas boas para carrinhos de lomba), outras planas com o rio em dia de mormaço (improvisados campos para jogos com bola). Ruas nem sempre próximas das avenidas principais, ruas afastadas ou a um passo das águas do Guaíba.
Gosto das ruas do Centro, daquela comedida confusão onde me acostumei a encontrar pequenos tesouros — uma loja de discos alternativos no fundo de uma galeria comercial, uma barraquinha de cachorro-quente para amenizar a fome na saída da faculdade, um sebo caótico como universo de criança, um artista de rua e suas mil peripécias. Mas gosto particularmente é das ruas de bairro. Antigas casas com pátio e cachorro, fachadas de madeira resistindo (até quando?) à especulação imobiliária, alguns novíssimos condomínios... Quadras residenciais salpicadas de pequenos mercados, ou de lojinhas da moda efêmeras como cogumelos. Paradas de ônibus quase vazias, calçadas irregulares, um gato solitário, casais de velhinhos mateando, observando o tempo e a vida dos outros. E sobretudo as árvores. Umas parecendo ter estado lá desde o início do mundo, outras parecendo ter fugido anteontem do parque mais próximo. Só Porto Alegre tem árvores que escapam dos parques para dar uma volta pelo bairro. É que a cidade tem espaços que convivem bem, chegam a se confundir até.
Gosto destes passeios, de uma caminhada ao parque, sombras, nesgas de sol, paralelepípedos, sonhos. A cadelinha vai na frente: não que ela corra muito, já é velhinha, está na família há anos, mas continua fascinada pela rua. Atrás vamos nós, mate, pernas, conversas, olhos. Chegamos ao verão, mas as árvores continuam floridas como se fosse primavera. Adivinhamos o nome das espécies conhecidas e inventamos o das desconhecidas. Choveu durante a noite, a umidade que cobre tudo acentua o cheiro de arrabalde. Também ventou durante a noite, vento bom que atenua o calor. Há folhas e galhos caídos disputando espaço com as pedras soltas — calçamento falho que não chega a atrapalhar quem não tem pressa.
À toa, paramos aqui e acolá, experimentamos a textura das árvores, rolamos com os pés uma fruta caída e solitária. Se encontro sementes, faço delas artilharia, como nas antigas disputas infantis movidas a bolinhas de cinamomo. De repente, recolho um graveto, brinco com as formigas, risco o chão. Tenho mania de catar gravetos quando saio a caminhar, pequena mania de doido manso. Quando criança, pela rua, travava com os amigos encarniçadas e inofensivas batalhas. Íamos munidos de lanças e espadas — taquaras e pedaços de madeira. Não creio que eu tenha sido um bom esgrimista, mas tampouco fui dos piores, e às crianças tudo se perdoa. Hoje, busco gravetos pela rua. Encontro um, carrego-o por uma ou duas quadras, vou testando sua flexibilidade, o barulho que faz ao riscar o piso... Até que encontro outro mais novo ou mais vistoso ou mais diferente — mais divertido, enfim — e substituo o antigo por ele. Sigo sem dar por mim, sem pensar nas pequenas manias. Passam as ruas, passam-me o mate, sorvo-o e converso. Sigo, enfim, como se fosse primavera.

Crônica escrita após minha passagem por Porto Alegre em dezembro de 2010. Os leitores atentos dirão que ela poderia ter sido publicada em Cartas de Tantas Léguas, meu blogue de viagens; não estarão errados, mas preferi colocá-la aqui pelo que ela tem de sentimental e pelo que significa para mim, porto-alegrense irredutível.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Das sementes


A vida são as pessoas. Nós e os outros. Especialmente aquele outro ou outra que nos faz sorrir. Sorrir de um jeito inusitado, inesperado. Como quando semeamos. Nem sempre é fácil, às vezes não sabemos o que é semente e o que é cascalho... Mas apenas seguindo em frente florescemos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Poema do sempre que nunca passa














Toca o sino da igrejinha.
Cidade pequena de praça e coreto,
gente simples de rotina sempre a mesma,
tão sempre a mesma gente, meu Deus!

Igreja eternamente cheia de senhorinhas carolas,
cores sóbrias e terços nas mãos,
a vida inteira a escorrer lá fora.

Sempre a mesma vidinha sem graça, meu Deus,
e sempre a mesma confiança cega
de que tudo vai melhorar
no Natal, no ano que vem, na próxima estação...

Mas (pergunta alguém) as coisas não melhoram?
Diz o velhinho na praça: se melhorar, piora.

texto e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Estranhos Amantes

Quando acordei, estavas ao meu lado e não te reconheci. Deslembrado eu do tempo em que te levar para a cama era uma arriscada e doce aventura. Levantei-me, escovei os dentes, olhei-me no espelho e havia outro rosto a me mirar. Outro, não eu, a quem devia pertencer a mulher que se estendia na cama, adormecida. Outro que por certo te havia jurado amor eterno. Houve um tempo em que me apaixonei pelo teu jeito de dormir; pelo jeito com que sorrias, movimentando de leve os lábios num gesto tão natural, mesmo desacordada. Mas depois fui eu que me entreguei a um sono longo, não sei quanto tempo passei longe de tudo, longe de mim. Quando acordei, ao teu lado, estava tão longe de ti. Envergonhado, vesti-me. Acordaste e eu não soube o que dizer, tu me chamaste de volta para a cama alegando ser domingo. Então tornei a deitar, mas eu estava ausente. Fiquei ouvindo a arruaça que os pássaros faziam lá fora enquanto te rias, que tolo eu era, onde andava com a cabeça, acordar em pleno domingo e me vestir para o trabalho, depois tu me chamares para a cama e eu me deitar com a camisa imaculada, amassando os vincos tão bem passados por tuas mãos carinhosas. Miraste-me com leve repreensão, eu fechei os olhos. Tu me desabotoaste a camisa, procurando meu peito com a mão, que mão aquela, de toque tão estranho ao meu tato, quem eras, como podias me querer assim, aquilo era querer? E o amor o que era, amor por quem? Ao lado da cama havia um porta-retratos, dois rostos felizes colados um ao outro contemplavam a eternidade. Fitei-os como quem tenta entender, depois tive vergonha por devassar a intimidade de anos daqueles rostos, intimidade que não me pertencia, terá alguma vez me pertencido? Ao meu lado, na cama, afastaste o lençol e eu pensei em evitar teu corpo despudoradamente só de camisola, mas não reparaste e buscaste um abraço que eu não soube retribuir, envolveste-me e sussurraste — tu te lembras do nosso primeiro beijo? Eu não tive coragem de te encarar, não saberia confessar para ti, uma estranha, a minha desmemória, o meu afastamento, a minha desconfiança, a minha ignorância. Silenciei e encarei a porta do quarto, a moldura de madeira por onde entrou correndo uma menina, uma menina incrivelmente parecida com a moça que, nunca esquecerei, eu havia jurado amar eternamente. A menina tinha os olhos da moça da foto e veio gritando até nós — papai, mamãe! Então eu chorei baixinho e soube como nunca que, pela primeira vez, nem tu nem ninguém poderia enxugar o meu pranto.

texto e fotografia por Edurado Trindade