domingo, 4 de dezembro de 2011

Navio-Fantasma

Nuestro norte es el sur.
Torres García, artista uruguaio
Vaga, vela, remo, onda,
onde?
O sul é nosso norte.
Bússola quebrada,
maresia,
calmaria.

Este suor salgado de mar,
este mar banhado de dor,
este mundo sem história.
¡No pasarán!
O que foi já é passado.

Vaga, meu coração,
remo, vela,
tempestade,
este tempo
fora do tempo.

Pouso forçado, porto fechado,
a volta ao mundo
por não saber aportar.
Onda, vela,
volta ao meu mundo, coração,
a todo pano.
Eduardo Trindade

sábado, 29 de outubro de 2011

Travessia

Que o poema seja livre
como uma travessia de veleiro.

Que o travesseiro seja porto,
princípio e meio.

Mergulhemos na cama
como quem viaja.

Mudos ou loquazes:

qualquer suspiro é um mundo
para quem sonha.


Eduardo Trindade

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sabiá

Alguém dirá
“Não é de ti que tenho saudades,
mas do mundo que representas.”
Será dito
“Quem dera não mudasses,
eu permaneceria o mesmo.”
Há quem não admita a mudança
e mude sem perceber.
Está escrito
“Quem espera sempre alcança”,
mas podem tudo as palavras,
não as pessoas.
“Esperarei”,
e espera-se demais
ou espera-se de menos.
Na despedida:
“Eu te amarei para sempre.”
Sempre distante de quem se amou,
distante ainda mais de quem se julga amar,
há quem pense sem dizer
e há quem fale sem pensar.
Lá fora, há de cantar
um sabiá.

Eduardo Trindade

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Amar é fazer valer a pena

Chegará talvez um tempo em que parecerá tarde demais, então te buscarei num dicionário de palavras proibidas, num livro de vocábulos nunca ditos, numa biblioteca de sensações inéditas.
Tempo haverá em que não precisaremos de mais tempo para nos entendermos. Desprezaremos os idiomas. Não se tratará de aprender tua língua, apreenderei tua língua nos meus lábios, e tuas mãos estarão nas minhas, teu abraço estará no meu. Confundirei o meu e o teu numa palavra.
Nosso mundo será livre quando libertarmos nossas palavras, nossos corações serão livres quanto liberto também estiver nosso silêncio.
Chegará um tempo em que só nos restará ir além. Só nos restará fazer valer a pena.

Eduardo Trindade

sábado, 30 de julho de 2011

Enquanto lá fora

Enquanto esta chuva molhar as pedras da rua
ou este vento sacudir as bandeiras do varal
e varrer as folhas do nosso jacarandá
deixando sempre outras folhas de outras árvores,

enquanto o sol pintar de reflexos nosso dia
ou esta noite cobrir de saudade nossos olhos,

enquanto caminharem pacientemente as dunas da praia,
sutil ampulheta de vento e tempo e areia
a medir não sei o quê,

enquanto sentir um não-sei-o-quê
(e sei que vou senti-lo)

vou te dar todo o sentido

que não sei se é infinito
pois não sei medi-lo

mas que é o sentido

da pele eriçada, da respiração suspensa, do coração aos pulos.

Do abraço apertado e dos olhos fechados
enquanto a chuva, o vento, o tempo
passam lá fora.

sábado, 16 de julho de 2011

A quem cabe na palma da mão

Bazoguita.
Túti, chegaste há tanto tempo que os detalhes são imprecisos, chegaste bebê, eu era guri e o mundo era um mundo. Chamaram-te Túti, chamamos-te Túti, eu fui o único a insistir no acento em teu nome (paroxítona terminada em i), mas não importava tanto, não assinavas, tua assinatura era teu latido.
Durante uma vida foste nossa cachorrinha. Durante quatro lares foste nossa irmãzinha. Quatro casas, mais as temporadas em Capão da Canoa, quando corrias na praia mas tinhas medo do mar, mais a casa temporária da Glória, em que outra cachorrinha, a Bibi, vivia te importunando (lembras?), mais algumas outras em que fomos visitas, tu que estavas conosco, tu que eras da família.
Tu que cabias na palma da mão, tu te lembras de uma foto em que estás toda encolhidinha dentro de uma pantufa, a cabeça apenas para fora? Não cresceste muito, os da tua raça não crescem muito, continuaste cabendo num colo, num abraço. E não é preciso mais que a palma da mão para um carinho. Quando há carinho, o mundo cabe na palma da mão.
Cresceste com nosso irmão Tiago, lembras como ele era também pequeno, quase como tu? Lembras quando começamos a conversar contigo numa língua inventada, brincadeira de criança? Bazoguita, matuia, tutipum. Olhavas, nem sempre respondias, mas entendias. Era o nosso segredo.
Durante quantos churrascos fomos uma família. Quantas brincadeiras, escadas (sempre tive medo de que as escadas fizessem mal à tua coluna, tu que eras tão frágil). Passeios no Brique, idas ao parque.
Saí de casa e passamos a nos ver menos, nunca pudeste me visitar, mas com que alegria eu te visitava e com que alegria me recebias. Como gostavas do sofá, com que alegria me convidavas para sentar junto contigo, tu que deitavas no sofá com a cabeça sobre a minha perna e me obrigava a te pedir licença sempre que eu precisava me levantar. Uma vez apenas foste te despedir de mim no aeroporto e te expulsaram, o aeroporto parece que não é lugar para cachorros. Ficavas agitada quando me vias arrumar uma mala, temias as despedidas. Às vezes eu saía de madrugada para o aeroporto e te deixava dormindo, despedia-me em silêncio por não querer te acordar, mas como doía. Como dói não poder se despedir.
Então chegou o dia de hoje e foi tua vez de ir embora. Sim, como dói não poder se despedir. Espero que tenhas sido feliz, espero que tenhamos sido uma boa família.
Sejas feliz, é o que dizias a cada um de nós, é o que te dizíamos. Bazoguita.
É o nosso segredo.

sábado, 9 de julho de 2011

Vento



O vento frio do crepúsculo
fazia mover sem sentido
as sombras de antigas lembranças,

sobras estacionadas
na contramão do tempo.

sábado, 2 de julho de 2011

Vertigem

Esta vertigem pensei que se devesse à tua presença.
Então veio a noite
e pensei que se devesse à tua ausência
esta vertigem.

Atrás de ti a porta aberta,
esta friagem,
aragem.

Uns olhos úmidos,
imperfeitos,
nunca confessaria que fossem por ti
(perfeição).

As paredes giram,
a janela,
as estrelas,
vertigem!

Mil rostos giram,
espelho e caleidoscópio,
vertigem.
Vejo-te em cada rosto
mas não estás
no quarto vazio
que é só
vertigem.

versos e fotografia por Eduardo Trindade

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Boneca Russa


Amo o universo que escondes
no infinito que insinuas.

Amo o tempo além do tempo
que trazes no ventre
e sobretudo no olhar.

Não tenho medo de chegar aonde terminas,
quero é descobrir onde começas.

versos e imagem por Eduardo Trindade

domingo, 12 de junho de 2011

O Mapa das Nuvens

Eu quero o mapa das nuvens
e um barco bem vagaroso.

Mario Quintana

Chega um ponto em que é preciso fazer escolhas, tomar decisões, enfrentar o abismo. Há algo que se sente e que seria simplista demais resumir em uma única palavra — amor, paixão, ou qualquer outra que se inventasse. Algo que atrai como o desconhecido, que amedronta como o escuro. E que, sendo belo e luminoso, faz-nos querer manter os olhos fechados. Sonhei-te, dancei-te, beijei-te em silêncio, escrevi poemas, falei bobagens — insisti nas bobagens porque tinha medo das coisas sérias. De tanto querer o próximo passo, acabamos adiando-o com medo de um passo em falso. Este temor que paralisa, que nos faz esquecer que a corda é bamba. A corda vibra mesmo quando tentamos nos manter imóveis. Tolo comodismo. A estrada só se abre a quem segue em frente. Só quem se move pode manter o equilíbrio, é como andar de bicicleta. A natureza é sábia. Criou-te e criou cada um dos instantes em que nos encontraríamos. Pisquei os olhos e percorri tua pele. Levei-te para a cama uma, duas, três vezes (não é verdade que eu não saiba quantas vezes foram, lembro-me dos detalhes de cada uma delas, mas a frase em forma de dúvida aguça a mente e a imaginação, e o que mais quero é me unir a ti até o infinito). Cultivo a dúvida porque não sei viver sem a certeza; entender meus motivos deve ser complicado, é tudo medo. Mas quero é entender teus recuos e saltos, teu bote, a brisa que te traz, o mar em que me perco. Mar de sentidos (e um abismo de escolhas). Não há sentido sem tua presença. Contigo escolho enfrentar o abismo, contigo darei a volta ao mundo, e iremos pelo caminho mais lento, o caminho que dê tempo às nossas descobertas.

texto e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Cidade Estranha


Então aconteceu que, longe de ti, o mundo já não era grande o bastante para eu me perder nem pequeno o suficiente para me acolher.

Imagem: Google Maps

domingo, 15 de maio de 2011

Chapéus

Aquela cena clássica do homenzinho, geralmente humilde, segurando o chapéu com as duas mãos. Treme de nervosismo, pode ser um capanga incumbido de dar uma notícia ruim ao chefão ou um caipira prestes a pedir autorização ao sogro para casar com sua filha. Aperta instintivamente o chapéu, torce a aba, parece querer mordê-la com os dedos. É um cachorro acuado que, no entanto, não corre do seu destino.
As diferentes formas de se oferecer um cumprimento. A mão em pala erguida energicamente à altura do quepe. Um leve toque com os dedos na aba, reconhecimento mútuo entre velhos camaradas. O chapéu de copa emplumada girando até o chão num gesto teatral que inclui todo o corpo, suprema galanteria de capa e espada.
Um sutil ajuste na altura do chapéu, a tempo encobrindo e revelando os olhos que, estes sim, num quase-improviso de palco, lançam uma mirada fatal a uma bela mulher, dizendo tudo sem dizer nada. A sedução de quem está em Casablanca nos anos quarenta, de preferência em preto e branco e na tela grande. Seria possível a uma mulher provida de coração resistir?
Confesso que ensaiei algumas vezes este gesto: ajustava o chapéu, baixava sutilmente a cabeça, erguia mais sutilmente ainda os olhos, desenhava com os lábios o sorriso invisível de tanta sutileza. Funcionava? Bem, só pratiquei diante do espelho, e ele nunca respondeu. Talvez fosse o chapéu errado.
Verdade é que não é fácil achar o chapéu certo hoje em dia, ninguém mais o usa. Por isso, não perdi a oportunidade quando avistei, em Roma, uma legítima chapelaria. Sorri diante dos chapéus de madame. Admirei as cartolas e os chapéus de mafioso - mesmo sabendo que estes não eram (ainda?) para um amador como eu. Meus olhos pousaram então num "cappello tascabile" (chapéu de bolso, ou dobrável), belo apesar do nome, que parecia um fantástico compromisso entre a elegância e a praticidade. Chamei a atendente dizendo que queria experimentar e me surpreendi com a precisão com que ela acertou o meu número. Minha cabeça é notoriamente pequena, ajusto os bonés na posição mais apertada, certa vez coube em mim um capacete de brinquedo que havia ficado pequeno em meu irmãozinho, noutra vez alguém brincou comigo perguntando como eu podia ser tão inteligente com uma cabeça tão pequena, ao que respondi, também brincando - vai ver ela é pequena, porém densa.
Pois a moça da loja bastou olhar para minha cabeça e escolheu para mim um tamanho que cabia como uma luva. Ou como um chapéu. Experimentei, aprovei, paguei, saí para a rua contente da vida. Agora resta praticar aquele gesto, desta vez com o chapéu certo, e principalmente para a mulher certa. Sempre te quis fazer poesia com os olhos.

sábado, 7 de maio de 2011

Marítima

As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio.
Franz Kafka

Diante de ti inúteis
os chumaços de algodão:
sereia de verdade
canta com o coração.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Mural

Palavra amarga entre dois nós,
azedume que trava a língua,
travalínguas.
Frases feitas
tão singelas
e impronunciáveis,
poema que nasceu sem ser gerado,
geração perdida,
quem há de se encontrar?
Busca-se um teto para alojar versos,
busca-se adoção para
os confusos desesperos
da língua.


por Eduardo Trindade

sábado, 9 de abril de 2011

Sobre livros


Sobre livros:
amigos, como não tê-los?



(C. Tristán Narvaja, Montevideo, 2011)
















por Eduardo Trindade

sexta-feira, 25 de março de 2011

terça-feira, 15 de março de 2011

Noturno

Se te entregas inteira
eu fecho os olhos, medroso.
E se o sonho em que te amo
for apenas
o sonho em que te amo?

terça-feira, 1 de março de 2011

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Navegar é preciso

Estas conchas que parecem perdidas
na areia da praia
são garrafas com mensagens
não de antigos naufrágios
mas de paixões misteriosas.

Experimenta aproximá-las do ouvido.
Escuta?
As conchas que vão dar na praia
contêm o eco das sereias.

Dizem que é preciso
ser muito louco
ou muito corajoso
para atender seu chamado

e que cada concha tem um timbre único
à espera de seu navegador particular.

Ouves, pescador, este lânguido lamento
nas ondas do mar?
É uma sereia suspirando
com medo de ser esquecida.

Paciência, querida,
a maré está mudando,
estou enfunando as velas,
decorei o mapa das ondas
e embalado pelo teu canto
conto com o gosto molhado
de um beijo de espuma.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sete vezes sete

Hoje vou dar um tempo à minha escrita habitual e enveredar por outro caminho. Já disse antes que não me sinto à vontade com muitas das correntes que circulam na blogosfera; mas faço uma doce exceção quando não se trata de correntes, mas de gente querida. Nas últimas semanas, andei recebendo presentes-surpresas que quero retribuir agora, embora com algum atraso.
Primeiro Yara, a criativa e impagável amiga do Dueto de Um que tenho o prazer de conhecer pessoalmente apesar de ela morar quase no outro extremo do país, citou este blogue e fez um convite para o “Desafio dos Sete”.
A Marina, do blogue Do Fundo do Mar, lembrou de mim de uma forma muito carinhosa ao falar do Selo de Qualidade. Ainda não conheço pessoalmente a Marina, mas pelos textos já tenho certeza de que temos muito em comum.
E a Aline Veingartner escreveu uma legítima e adorável crônica (ou resenha) a respeito do meu livro e dos meus textos. Fiquei todo prosa quando li a homenagem dela! Ainda mais porque essa guria também é escritora e eu diria que muito talentosa e promissora.
Obrigadíssimo, de coração!
O que escrevo a seguir é parte do “Desafio dos Sete”, que escolhi para dar sequência, do meu jeito, a esta brincadeira. O desafio consiste em dar sete respostas às sete questões que vocês lerão. Pois aí está. Para algumas das perguntas eu teria bem mais de sete respostas, poderia escrever páginas e páginas... Para outras, já é bem mais difícil. Enfim, só vou abrir mão de indicar mais sete blogues para seguir o desafio, como era o pedido original: eu volta e meia recomendo, aqui, no Twitter ou mesmo pessoalmente, os blogues de que gosto, mas não quero que ninguém se sinta forçado a nada. Quem quiser, fique à vontade para aceitar o “Desafio”!

7 coisas que tenho que fazer antes de morrer:
- compor uma canção;
- dar a volta ao mundo;
- passear uma noite numa ger (tenda) mongol;
- fazer amor à luz da lua;
- morar numa casa com jardim, horta, pomar, animais;
- velejar até Fernando de Noronha;
- vestir-me de Papai Noel.

7 coisas que mais digo:
- Bah!
- As coisa são difícil. (sic – é uma piada interna, bem entendido)
- Douze. (sic – outra piada interna)
- Desculpa. (mesmo quando não tenho motivo para me desculpar)
- Bom dia,
- Por favor,
- Obrigado – e todas as outras palavras que me fazem parecer um menino educado.

7 coisas que eu faço bem:
- chimarrão;
- andar em casa de olhos fechados;
- relembrar momentos obscuros da infância;
- improvisar (sim, eu assistia McGyver);
- encontrar o lado positivo de qualquer situação;
- encontrar relíquias num sebo;
- planejar viagens que parecem um quebra-cabeças logístico.

7 defeitos meus:
- não saber dizer “não”;
- deixar de dizer coisas que deveriam ser ditas;
- preguiça quase insuperável na hora de fazer faxina;
- a arte da procrastinação;
- inacreditável falta de talento musical;
- inacreditável falta de talento para a dança;
- insistir em tocar e dançar apesar dos dois itens anteriores.

7 coisas que amo:
- livros;
- um barco a vela;
- um leve toque de exotismo no tempero da comida;
- chás;
- viagens;
- as pessoas, paisagens, coisas, histórias e sabores que encontro quando viajo;
- elogios espontâneos.

7 qualidades minhas:
- habilidade com números;
- habilidade com letras;
- criatividade;
- sinceridade;
- senso de justiça;
- objetividade (quando vem ao caso);
- e subjetividade (também quando vem ao caso).

7 blogues indicados:
- conforme expliquei acima.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Sol da Meia-Noite










Não é da noite que tenho medo
nem da escuridão,
sei que a noite eu posso passar contigo
e que no escuro posso te procurar,
ousado,
como amante despudorado
ou como criança indefesa...

Não,
não tenho medo da ausência,
sempre há um tempo de luz depois da ausência,
confio no reencontro:
na mútua sedução de nossos olhares
que hão de se atrair
e, se não funcionarem,
é porque não era mesmo para ser assim.

Tenho medo é de que o dia não termine.
De que a luz não dê tréguas.
Por quanto tempo vais desejar minha presença
se não pudermos fechar os olhos?
Preciso da ausência
como preciso da noite e do escuro
para mostrar que, mesmo perdido,
procurarei teus braços
e encontrarei teu corpo
e teus afagos.

A insegurança atiça meu desejo.
Tenho medo destas latitudes polares
em que o sol sempre brilha
porque nelas também vive a ameaça
da noite eterna.
Eterna? Tenho medo da eternidade
quando vem disfarçada de monotonia.

Quero o sol da meia-noite
como coisa inusitada e bela e inesquecível
a desafiar os medos todos
meus e teus,
quero, estando contigo,
perder a conta das horas
e acordar cego de paixão
e acordar louco de prazer
num tempo de renovação.

Versos e fotografia (pôr-do-sol sobre as nuvens em algum ponto perto da Escandinávia) por Eduardo Trindade

domingo, 30 de janeiro de 2011

Como se fosse primavera

Uma das coisas que me atraem em Porto Alegre é que a cidade gira em torno dos parques. Parques e praças. Detalhe bobo, talvez, mas é nestes recantos, transformados em áreas de convívio, que nós porto-alegrenses nos reunimos para uma caminhada e um chimarrão – pretexto perfeito para todo tipo de encontro e de conversa. Coisa boa estar assim. Um chimarrão. Nos parques e praças de Porto Alegre.
Que, por sua vez, giram em torno das árvores. Mas as árvores não se restringem a estes espaços, estão esparramadas pelas ruas. Bairros de calçadas largas, muitas delas íngremes (ruas boas para carrinhos de lomba), outras planas com o rio em dia de mormaço (improvisados campos para jogos com bola). Ruas nem sempre próximas das avenidas principais, ruas afastadas ou a um passo das águas do Guaíba.
Gosto das ruas do Centro, daquela comedida confusão onde me acostumei a encontrar pequenos tesouros — uma loja de discos alternativos no fundo de uma galeria comercial, uma barraquinha de cachorro-quente para amenizar a fome na saída da faculdade, um sebo caótico como universo de criança, um artista de rua e suas mil peripécias. Mas gosto particularmente é das ruas de bairro. Antigas casas com pátio e cachorro, fachadas de madeira resistindo (até quando?) à especulação imobiliária, alguns novíssimos condomínios... Quadras residenciais salpicadas de pequenos mercados, ou de lojinhas da moda efêmeras como cogumelos. Paradas de ônibus quase vazias, calçadas irregulares, um gato solitário, casais de velhinhos mateando, observando o tempo e a vida dos outros. E sobretudo as árvores. Umas parecendo ter estado lá desde o início do mundo, outras parecendo ter fugido anteontem do parque mais próximo. Só Porto Alegre tem árvores que escapam dos parques para dar uma volta pelo bairro. É que a cidade tem espaços que convivem bem, chegam a se confundir até.
Gosto destes passeios, de uma caminhada ao parque, sombras, nesgas de sol, paralelepípedos, sonhos. A cadelinha vai na frente: não que ela corra muito, já é velhinha, está na família há anos, mas continua fascinada pela rua. Atrás vamos nós, mate, pernas, conversas, olhos. Chegamos ao verão, mas as árvores continuam floridas como se fosse primavera. Adivinhamos o nome das espécies conhecidas e inventamos o das desconhecidas. Choveu durante a noite, a umidade que cobre tudo acentua o cheiro de arrabalde. Também ventou durante a noite, vento bom que atenua o calor. Há folhas e galhos caídos disputando espaço com as pedras soltas — calçamento falho que não chega a atrapalhar quem não tem pressa.
À toa, paramos aqui e acolá, experimentamos a textura das árvores, rolamos com os pés uma fruta caída e solitária. Se encontro sementes, faço delas artilharia, como nas antigas disputas infantis movidas a bolinhas de cinamomo. De repente, recolho um graveto, brinco com as formigas, risco o chão. Tenho mania de catar gravetos quando saio a caminhar, pequena mania de doido manso. Quando criança, pela rua, travava com os amigos encarniçadas e inofensivas batalhas. Íamos munidos de lanças e espadas — taquaras e pedaços de madeira. Não creio que eu tenha sido um bom esgrimista, mas tampouco fui dos piores, e às crianças tudo se perdoa. Hoje, busco gravetos pela rua. Encontro um, carrego-o por uma ou duas quadras, vou testando sua flexibilidade, o barulho que faz ao riscar o piso... Até que encontro outro mais novo ou mais vistoso ou mais diferente — mais divertido, enfim — e substituo o antigo por ele. Sigo sem dar por mim, sem pensar nas pequenas manias. Passam as ruas, passam-me o mate, sorvo-o e converso. Sigo, enfim, como se fosse primavera.

Crônica escrita após minha passagem por Porto Alegre em dezembro de 2010. Os leitores atentos dirão que ela poderia ter sido publicada em Cartas de Tantas Léguas, meu blogue de viagens; não estarão errados, mas preferi colocá-la aqui pelo que ela tem de sentimental e pelo que significa para mim, porto-alegrense irredutível.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Das sementes


A vida são as pessoas. Nós e os outros. Especialmente aquele outro ou outra que nos faz sorrir. Sorrir de um jeito inusitado, inesperado. Como quando semeamos. Nem sempre é fácil, às vezes não sabemos o que é semente e o que é cascalho... Mas apenas seguindo em frente florescemos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Poema do sempre que nunca passa














Toca o sino da igrejinha.
Cidade pequena de praça e coreto,
gente simples de rotina sempre a mesma,
tão sempre a mesma gente, meu Deus!

Igreja eternamente cheia de senhorinhas carolas,
cores sóbrias e terços nas mãos,
a vida inteira a escorrer lá fora.

Sempre a mesma vidinha sem graça, meu Deus,
e sempre a mesma confiança cega
de que tudo vai melhorar
no Natal, no ano que vem, na próxima estação...

Mas (pergunta alguém) as coisas não melhoram?
Diz o velhinho na praça: se melhorar, piora.

texto e fotografia por Eduardo Trindade

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Estranhos Amantes

Quando acordei, estavas ao meu lado e não te reconheci. Deslembrado eu do tempo em que te levar para a cama era uma arriscada e doce aventura. Levantei-me, escovei os dentes, olhei-me no espelho e havia outro rosto a me mirar. Outro, não eu, a quem devia pertencer a mulher que se estendia na cama, adormecida. Outro que por certo te havia jurado amor eterno. Houve um tempo em que me apaixonei pelo teu jeito de dormir; pelo jeito com que sorrias, movimentando de leve os lábios num gesto tão natural, mesmo desacordada. Mas depois fui eu que me entreguei a um sono longo, não sei quanto tempo passei longe de tudo, longe de mim. Quando acordei, ao teu lado, estava tão longe de ti. Envergonhado, vesti-me. Acordaste e eu não soube o que dizer, tu me chamaste de volta para a cama alegando ser domingo. Então tornei a deitar, mas eu estava ausente. Fiquei ouvindo a arruaça que os pássaros faziam lá fora enquanto te rias, que tolo eu era, onde andava com a cabeça, acordar em pleno domingo e me vestir para o trabalho, depois tu me chamares para a cama e eu me deitar com a camisa imaculada, amassando os vincos tão bem passados por tuas mãos carinhosas. Miraste-me com leve repreensão, eu fechei os olhos. Tu me desabotoaste a camisa, procurando meu peito com a mão, que mão aquela, de toque tão estranho ao meu tato, quem eras, como podias me querer assim, aquilo era querer? E o amor o que era, amor por quem? Ao lado da cama havia um porta-retratos, dois rostos felizes colados um ao outro contemplavam a eternidade. Fitei-os como quem tenta entender, depois tive vergonha por devassar a intimidade de anos daqueles rostos, intimidade que não me pertencia, terá alguma vez me pertencido? Ao meu lado, na cama, afastaste o lençol e eu pensei em evitar teu corpo despudoradamente só de camisola, mas não reparaste e buscaste um abraço que eu não soube retribuir, envolveste-me e sussurraste — tu te lembras do nosso primeiro beijo? Eu não tive coragem de te encarar, não saberia confessar para ti, uma estranha, a minha desmemória, o meu afastamento, a minha desconfiança, a minha ignorância. Silenciei e encarei a porta do quarto, a moldura de madeira por onde entrou correndo uma menina, uma menina incrivelmente parecida com a moça que, nunca esquecerei, eu havia jurado amar eternamente. A menina tinha os olhos da moça da foto e veio gritando até nós — papai, mamãe! Então eu chorei baixinho e soube como nunca que, pela primeira vez, nem tu nem ninguém poderia enxugar o meu pranto.

texto e fotografia por Edurado Trindade