sexta-feira, 19 de março de 2010

Estiagem

Esta pena com que escrevo é meu espinho,
estilete de luz que me caiu às mãos.
Este poema que escrevo, que escrevemos
(pois a vida é um pergaminho desenrolado aos nossos pés),
este poema é uma sangria,
antiquada e desesperada sangria.
Mas tem dias em que a pena seca:
em vão procuro o papel, a epiderme.
O que havia da vida coagulou há tempo,
petrificou-se. E faltam lágrimas...
As lágrimas são poucas
como a garoa que evapora antes de tocar o chão.
E, se um dia acordar da febre,
não louco nem suicida, apenas humano
— exageradamente humano —
o primeiro gesto que terei
será regar o jardim de girassóis
com as lágrimas, o sangue e o riso
que brotarão, sem que eu perceba,
da folha virgem de papel fecundada
pelo amor que eu tinha guardado para ti.

por Eduardo Trindade

segunda-feira, 1 de março de 2010

Piano

Tudo quanto espero agora é um grito.
O rasgo pungente de um choro
desadormecido na hora errada.
Calma, mãezinha, já vai passar.
Chora, criança, que o sono já vem.
Tudo que chove agora é incerto, é frio e vento.
Tudo que tento não me satisfaz agora.
Sendo redondo o mundo, todos os caminhos
levam ao mesmo caminho.
Tudo que é inverno agora
é o mais interno de mim.
Que bem me faria agora a indiferença,
a suave limpidez da voz de uma criança
atravessando o primeiro movimento
de uma sonata ao luar.

por Eduardo Trindade