por Eduardo Trindade
Pedro abriu o livro na página indicada pela professora e iniciou a leitura. Sua voz límpida enchia a sala à medida que corria os olhos pelas linhas. Sua oratória e a segurança com que escandia as palavras enchiam de gosto a professora, que não lhe poupava elogios. Por isto mesmo, era escolhido com frequência para as leituras na escola.
Em casa, diziam que tinha facilidade com os livros. Gostava de lê-los. Mais que isto, devorava-os. Livros de todos os tipos, a começar pelos que lhe compravam os pais, e em seguida os tantos que encontrava na biblioteca. Não chegava a ser um menino recluso, mas era inegável que, muitas vezes, preferia a companhia de um livro à companhia dos colegas que viviam na rua a correr e a jogar bola.
Lembrava-se de, ainda pequeno, ser acalentado, na cama, pela voz da mãe que lia para ele inúmeros contos infantis. Logo que pôde, quis ele mesmo decifrar as histórias que ficavam encerradas naquelas páginas de papel. Descoberto o enigma dos símbolos do alfabeto, mostrava a todo mundo, orgulhoso, a sua familiaridade com a leitura. Municiou-se dos mesmos livros que a mãe costumava ler para ele, passou a se instalar ao pé da irmãzinha pequena e lia ele mesmo as histórias para a menina. Ela ficava encantada, ele mais ainda.
Naquele dia, conforme a professora havia pedido, estava lendo um texto em voz alta para toda a turma com a sua confiança habitual. De repente, engasgou-se com uma palavra nova. Uma palavra com a qual nunca havia se deparado, inescrutável, estava ali a escarnecer dele, amedrontando-o, deixando-o lívido. Pedro tremia, sem conseguir vencer aquela misteriosa palavra:
— ...ines... ines... cru... tá... — gaguejava e, tomado de uma súbita e poderosa insegurança, voltava ao início: — ines... ines...
Até que a professora, vendo que o menino estava paralisado, e que começavam a surgir algumas risadinhas entre os demais alunos, ajudou-o:
— Inescrutável.
Tudo isto, que durou apenas um instante, vocês irão concordar comigo que para o Pedro foi uma longa eternidade. Tanto que ele ainda demorou um pouco para voltar a si e continuar a leitura, livre daquela palavra-pedra-no-caminho, mas sentindo-se intimamente humilhado. Não duvidem de que o restante da aula foi um tormento para o menino, que suspirou aliviado ao ouvir o toque para o recreio.
E o que fez Pedro? Saiu da sala para o pátio da escola com todos os seus colegas, mas era como se saísse sozinho. Como se fugisse. Sentou-se a um canto, num dos degraus de uma escada que não levava a lugar algum, apoiou um livro sobre os joelhos e pôs-se a ler. O rosto metido entre as páginas. Mergulhava numa leitura para esquecer de outra.
E foi como se mergulhasse numa grande espiral. Já não ouvia os gritos das crianças correndo pelo pátio. Tudo era apenas um zumbido indefinido. O vento soprava. Percebeu que o vento vinha das páginas do livro, que tremiam: as folhas estavam correndo sozinhas, e rapidamente, o livro batia as asas, queria voar! Mas que coisa! O menino não acreditou, acercou-se mais, o zumbido ficou mais intenso. Fechou os olhos para ouvir melhor, e foi como se os abrisse mais ainda. Agarrado ao livro, o menino voava. Sentia que passavam por si campos, mares, cidades. Sabia que ali viviam poetas, piratas, doutores. Quantas vidas se esconderiam nas páginas do livro? Concentrou-se mais. E lá estava o zumbido, crescendo, crescendo, até se apresentar a Pedro. Que, então, forcejou para desvendá-lo:
— Ines... inescrutável!
No mesmo instante, sentiu que uma mão tocava seu ombro, e foi como se o puxassem para fora do livro. O zumbido sumiu, o vento se aquietou, o coração parou, Pedro pestanejou e viu uma menina de grandes olhos verdes olhando para si. Ela falou:
— Oi... Tu és o Pedro, não? Ouvi falar de ti. Posso me sentar? — E, como ele aquiescesse em silêncio, a menina se aproximou. E completou: — Eu sou a Inês.
Pedro baixou os olhos e sentiu que os dela acompanhavam os seus. Soltou o livro. Já não precisava dele: a história que leria, enquanto durasse o encanto, era a sua própria.
Em casa, diziam que tinha facilidade com os livros. Gostava de lê-los. Mais que isto, devorava-os. Livros de todos os tipos, a começar pelos que lhe compravam os pais, e em seguida os tantos que encontrava na biblioteca. Não chegava a ser um menino recluso, mas era inegável que, muitas vezes, preferia a companhia de um livro à companhia dos colegas que viviam na rua a correr e a jogar bola.
Lembrava-se de, ainda pequeno, ser acalentado, na cama, pela voz da mãe que lia para ele inúmeros contos infantis. Logo que pôde, quis ele mesmo decifrar as histórias que ficavam encerradas naquelas páginas de papel. Descoberto o enigma dos símbolos do alfabeto, mostrava a todo mundo, orgulhoso, a sua familiaridade com a leitura. Municiou-se dos mesmos livros que a mãe costumava ler para ele, passou a se instalar ao pé da irmãzinha pequena e lia ele mesmo as histórias para a menina. Ela ficava encantada, ele mais ainda.
Naquele dia, conforme a professora havia pedido, estava lendo um texto em voz alta para toda a turma com a sua confiança habitual. De repente, engasgou-se com uma palavra nova. Uma palavra com a qual nunca havia se deparado, inescrutável, estava ali a escarnecer dele, amedrontando-o, deixando-o lívido. Pedro tremia, sem conseguir vencer aquela misteriosa palavra:
— ...ines... ines... cru... tá... — gaguejava e, tomado de uma súbita e poderosa insegurança, voltava ao início: — ines... ines...
Até que a professora, vendo que o menino estava paralisado, e que começavam a surgir algumas risadinhas entre os demais alunos, ajudou-o:
— Inescrutável.
Tudo isto, que durou apenas um instante, vocês irão concordar comigo que para o Pedro foi uma longa eternidade. Tanto que ele ainda demorou um pouco para voltar a si e continuar a leitura, livre daquela palavra-pedra-no-caminho, mas sentindo-se intimamente humilhado. Não duvidem de que o restante da aula foi um tormento para o menino, que suspirou aliviado ao ouvir o toque para o recreio.
E o que fez Pedro? Saiu da sala para o pátio da escola com todos os seus colegas, mas era como se saísse sozinho. Como se fugisse. Sentou-se a um canto, num dos degraus de uma escada que não levava a lugar algum, apoiou um livro sobre os joelhos e pôs-se a ler. O rosto metido entre as páginas. Mergulhava numa leitura para esquecer de outra.
E foi como se mergulhasse numa grande espiral. Já não ouvia os gritos das crianças correndo pelo pátio. Tudo era apenas um zumbido indefinido. O vento soprava. Percebeu que o vento vinha das páginas do livro, que tremiam: as folhas estavam correndo sozinhas, e rapidamente, o livro batia as asas, queria voar! Mas que coisa! O menino não acreditou, acercou-se mais, o zumbido ficou mais intenso. Fechou os olhos para ouvir melhor, e foi como se os abrisse mais ainda. Agarrado ao livro, o menino voava. Sentia que passavam por si campos, mares, cidades. Sabia que ali viviam poetas, piratas, doutores. Quantas vidas se esconderiam nas páginas do livro? Concentrou-se mais. E lá estava o zumbido, crescendo, crescendo, até se apresentar a Pedro. Que, então, forcejou para desvendá-lo:
— Ines... inescrutável!
No mesmo instante, sentiu que uma mão tocava seu ombro, e foi como se o puxassem para fora do livro. O zumbido sumiu, o vento se aquietou, o coração parou, Pedro pestanejou e viu uma menina de grandes olhos verdes olhando para si. Ela falou:
— Oi... Tu és o Pedro, não? Ouvi falar de ti. Posso me sentar? — E, como ele aquiescesse em silêncio, a menina se aproximou. E completou: — Eu sou a Inês.
Pedro baixou os olhos e sentiu que os dela acompanhavam os seus. Soltou o livro. Já não precisava dele: a história que leria, enquanto durasse o encanto, era a sua própria.
Aproveito para agradecer a gentileza da Maggie, que escreveu uma belíssima resenha sobre o meu livro: As Valsas Invisíveis.
10 comentários:
Caro Edu Trindade,
Ao findar de ler sua "Leitura", lembrei do filme "Tempos Modernos". Aluguei o DVD duplo, que vem com documentários extras. Vi-os ontem e hoje (sincronicidade?). Chaplin, no filme, parece a "ovelha negra", como seu personagem Pedro. Em ambas as histórias, os protagonistas encontram seus pares "românticos".
Interessante estar numa dura realidade (a de viver entre pessoas robotizadas pela máquina, ou que detestam da aventura fantástica de ler) e tentar fugir para o outro extremo, num mergulho "irresponsável" ou "chato" na fantasia, deixando-se envolver por completo a ponto de separar-se da realidade.
Acontece isso com Pedro, quando ele é praticamente engolido pelo livro, e com Carlitos, quando é tomado pela "loucura". Um figura feminina os tenta resgatar de volta à realidade, mas desta vez buscando uma atuação diferente.
No filme, Carlitos, depois de trabalhar numa fábrica e numa loja de departamentos, recebe a oportunidade (através de sua amada) para trabalhar numa casa de espetáculos como "garçon" e como "cantor". E é assim (atuando, fazendo mímica) que ele se descobre, vamos dizer, encontra um lugar seu, onde pode se perceber como indivíduo, e não como um mero robô. No final das contas, não é bem sucedido (porque a polícia os persegue), mas Carlitos já tem pelo menos uma identidade, um rumo, mesmo sem um horizonte à vista. Na minha percepção, isso lhe dá forças para continuar vivendo na realidade, mas agora sendo ele mesmo. Claro, com o apoio mútuo de sua amada.
Precisamos da arte, da literatura, para viver melhor a "realidade". Penso mesmo que a realidade é mais do que vemos ou sentimos, e que a Poesia, a Arte, nos fazem conectar à nossa essência verdadeira. E a palavra direta nem sempre consegue passar o que a Metáfora passa. Porque a verdade não está na máquina, não está nesta vida superficial que tentam nos impor.
A verdade é que a vida é ines... inescrutável!
lindo o seu conto, realmente fez lembrar minha infância e as temíveis aulas de leitura, onde tremiamos, onde nem sempre a desenvoltura estava presente.
amei. superação, esforço... seu conto passou isso pra gente.
Blog Suicide Virgin
Envolvente, Eduardo, esta é a primeira palavra que vem, quando lemos. Depois vem muitas outras: encanto, amor, irmão, angústia...e uma Inês para tornar a vida menos "INEScrutável".
Simplesmente, lindo!
Abraço.
Magna
Caro Sidarta,
Sinto-me um grande privilegiado por poder ler teu comentário. É muito bom descobrir que o texto suscitou tanta reflexão e tantas ligações inteligentes! Eu não escrevi pensando no "Tempos Modernos", mas concordo inteiramente com o paralelo que traçaste!
Amber Girl,
Que bom que te trouxe tudo isto! O conto é ficção, claro, mas também tem um pouquinho de realidade nas lembranças destas leituras...
Magna,
Emoções, ah! Fazem parte da vida, e da arte também. Espero que possamos sempre saber envolver (e deixar envolver).
Um último comentário: é só um detalhe, mas o nome dos personagens não é fortuito. Pedro e Inês são os protagonistas de uma das mais famosas histórias de amor portuguesas! Tudo bem que o foco do meu conto não é um relacionamento amoroso, mas...
Obrigado e abraços!
Explendido!
um conto delicado e ao mesmo tempo profundo!
me identifico muito com ele!
Parabens!
beijos
que graaaaaça esse texto! :) Parabéns, edu. Um beijão.
No início, a história parecia ser sobre mim. Depois, ela criou suas próprias asas. E que asas!
Belíssimo conto, Eduardo.
Olá Edu Trindade,
Devorei o conto! É uma sublime narrativa da iniciação no mundo da leitura/escrita.
Parabéns,
Graça
adorei o texto me identifiquei muito ...
http://pluralizandoa.blogspot.com/
Que lindo texto, Edu!
Um final repleto de romantismo, que chega a amolecer o coração. Do caos, nasce um mundo. Do erro, nasce um amor.
Abraços!
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