Ou como tu costumas falar?
A língua, bem sabemos, é um elemento importante da afirmação cultural de um povo. E, visto que a cultura nunca é algo homogêneo, mas sim algo vivo e cambiante com o tempo e o lugar, também não devemos esperar que a língua seja sempre a mesma. Não preciso sequer falar das diferenças entre o português brasileiro e o português de Portugal (ou da África, da Índia, da China): os exemplos estão muito mais próximos de nós. Sim, temos marcantes diferenças entre estados e inclusive dentro do mesmo estado. Temos mais: cada indivíduo tem a sua vivência e o seu ponto de vista, que se manifestam, naturalmente, no seu linguajar: o sotaque, as gírias, a escolha dos vocábulos mais adequados a cada situação.
Nem mesmo um único indivíduo é homogêneo: não é verdade que assumimos tons e palavras diferentes dependendo do interlocutor e do meio? Ou será que alguém aí usa exatamente a mesma linguagem para falar tanto com o chefe quanto com a esposa ou namorada, tanto ao telefone quanto por escrito? (E nem preciso citar os operadores de telemárquetim, que são um caso à parte.)
Cada uma dessas nuances da linguagem se presta a uma mensagem que desejamos passar – ora mais formal, ora mais descontraída, ora mais ou menos íntima.
E a quem cabe julgar se a linguagem é ou não adequada? Sendo um sujeito pacifista, não defendo a prisão perpétua ou a cadeira elétrica para quem tem desleixo com a língua, nem mesmo para os operadores de telemárquetim que abusam do gerúndio. Mas o julgamento, em cada situação, é inerente à sociedade, tão natural quanto o julgamento (ainda que implícito) de quem se veste de maneira inadequada ou quem descuida da etiqueta à mesa. Não digo que tal seja ou não adequado; o fato é que acontece o tempo todo e seria tolice ignorá-lo.
A comparação é interessante: assim como costumamos nos vestir de modo diferente para irmos à praia ou a uma festa, também há palavras que são adequadas num meio e não em outro. Alguém que conversasse comigo com apurado rigor gramatical causaria estranheza. Mas um texto com pretensões literárias onde ocorressem sucessivos deslizes ortográficos também soaria mal.
Notem que, num caso e noutro, a linguagem pode ser subvertida para provocar uma reação do interlocutor: não foi à toa que escrevi telemárquetim no lugar de telemarketing. Mas assumo toda a responsabilidade pelo neologismo deliberado.
Ao me mudar de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, ficaram escancaradas algumas diferenças de linguagem. Sobretudo na escolha dos pronomes – meu interlocutor é tu, enquanto que a maioria à minha volta conversa com você. Alguns conterrâneos meus, na mesma situação, acabaram adotando a terceira pessoa. Eu, talvez por birra, aferrei-me ainda mais ao meu singelo tu.
O que não deixa de causar reações, das quais procuro ter consciência (como no caso de telemárquetim). Acontece que, recentemente, um de meus contos foi premiado em um concurso e tive a satisfação de vê-lo integrando uma antologia. Pois, abrindo o livro, descobri que o revisor tinha alterado o texto sem me consultar, transladando-o da segunda pessoa (tu, teu) à terceira (você, seu). Se fosse apenas uma questão de rigor gramatical, eu não faria tanta questão (ambas as alternativas são igualmente corretas, desde que internamente coerentes). Mas a escolha dos pronomes não é aleatória: o emprego de uma conjugação menos comum (tu vais, tu queres), muito mais que uma afirmação regional, é um recurso que eu gosto de usar para criar um clima de fábula, de sutil desligamento da realidade, como era o caso. O que seria de nós se todos os nossos sonhos tivessem de ser, forçosamente, sonhados com um sotaque padrão de telenovela?
A língua, bem sabemos, é um elemento importante da afirmação cultural de um povo. E, visto que a cultura nunca é algo homogêneo, mas sim algo vivo e cambiante com o tempo e o lugar, também não devemos esperar que a língua seja sempre a mesma. Não preciso sequer falar das diferenças entre o português brasileiro e o português de Portugal (ou da África, da Índia, da China): os exemplos estão muito mais próximos de nós. Sim, temos marcantes diferenças entre estados e inclusive dentro do mesmo estado. Temos mais: cada indivíduo tem a sua vivência e o seu ponto de vista, que se manifestam, naturalmente, no seu linguajar: o sotaque, as gírias, a escolha dos vocábulos mais adequados a cada situação.
Nem mesmo um único indivíduo é homogêneo: não é verdade que assumimos tons e palavras diferentes dependendo do interlocutor e do meio? Ou será que alguém aí usa exatamente a mesma linguagem para falar tanto com o chefe quanto com a esposa ou namorada, tanto ao telefone quanto por escrito? (E nem preciso citar os operadores de telemárquetim, que são um caso à parte.)
Cada uma dessas nuances da linguagem se presta a uma mensagem que desejamos passar – ora mais formal, ora mais descontraída, ora mais ou menos íntima.
E a quem cabe julgar se a linguagem é ou não adequada? Sendo um sujeito pacifista, não defendo a prisão perpétua ou a cadeira elétrica para quem tem desleixo com a língua, nem mesmo para os operadores de telemárquetim que abusam do gerúndio. Mas o julgamento, em cada situação, é inerente à sociedade, tão natural quanto o julgamento (ainda que implícito) de quem se veste de maneira inadequada ou quem descuida da etiqueta à mesa. Não digo que tal seja ou não adequado; o fato é que acontece o tempo todo e seria tolice ignorá-lo.
A comparação é interessante: assim como costumamos nos vestir de modo diferente para irmos à praia ou a uma festa, também há palavras que são adequadas num meio e não em outro. Alguém que conversasse comigo com apurado rigor gramatical causaria estranheza. Mas um texto com pretensões literárias onde ocorressem sucessivos deslizes ortográficos também soaria mal.
Notem que, num caso e noutro, a linguagem pode ser subvertida para provocar uma reação do interlocutor: não foi à toa que escrevi telemárquetim no lugar de telemarketing. Mas assumo toda a responsabilidade pelo neologismo deliberado.
Ao me mudar de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, ficaram escancaradas algumas diferenças de linguagem. Sobretudo na escolha dos pronomes – meu interlocutor é tu, enquanto que a maioria à minha volta conversa com você. Alguns conterrâneos meus, na mesma situação, acabaram adotando a terceira pessoa. Eu, talvez por birra, aferrei-me ainda mais ao meu singelo tu.
O que não deixa de causar reações, das quais procuro ter consciência (como no caso de telemárquetim). Acontece que, recentemente, um de meus contos foi premiado em um concurso e tive a satisfação de vê-lo integrando uma antologia. Pois, abrindo o livro, descobri que o revisor tinha alterado o texto sem me consultar, transladando-o da segunda pessoa (tu, teu) à terceira (você, seu). Se fosse apenas uma questão de rigor gramatical, eu não faria tanta questão (ambas as alternativas são igualmente corretas, desde que internamente coerentes). Mas a escolha dos pronomes não é aleatória: o emprego de uma conjugação menos comum (tu vais, tu queres), muito mais que uma afirmação regional, é um recurso que eu gosto de usar para criar um clima de fábula, de sutil desligamento da realidade, como era o caso. O que seria de nós se todos os nossos sonhos tivessem de ser, forçosamente, sonhados com um sotaque padrão de telenovela?
texto e fotografia por Eduardo Trindade
6 comentários:
INACREDITÁVEL!!!!
Eu vinha lendo o seu post empolgadíssima, pronta para te chamar de “colega”, pois o seu texto é uma aula completa e acurada sobre o fenômeno da variação linguística, tema caro aos linguistas e ao MEC e que costuma ocupar um capítulo inteiro dos livros didáticos de português. Talvez sem saber, mas com extremo bom senso, você abordou todos os conceitos importantes relacionados ao tema e ainda recorreu à mesma metáfora do “guarda-roupa linguístico” usada por Evanildo Bechara para ilustrar a noção de adequação linguística e defender que o ensino regular de língua portuguesa auxilie o aluno a se tornar “um poliglota em sua própria língua”.
Mas, ao ler o fim do seu post, fiquei chocada... Esse ato de violência do revisor contra o seu texto AUTORAL e LITERÁRIO envergonha toda a classe (dos revisores, entre os quais me incluo). Mesmo tomando como referência a gramática normativa mais conservadora e reacionária, é uma “correção” que simplesmente não se justifica. Um completo absurdo...
Espero que “tu tenhas” mais sorte com os profissionais da língua na próxima vez. E parabéns pela publicação do conto na coletânea!
Quando se escreve, ali naquelas palavras existe uma verdade, uma idéia, um sentimento, um clima e qualquer alteração feita por outra pessoa têm que ter a concordância do autor, senão é uma ‘puta’ sacanagem. Gostei do texto explicativo, principalmente quando menciona que há diferença até entre duas pessoas de uma mesma cultura local.
Abraços
ns
Amigo tu tens um jeito tão peculiar de escrever, uma cadência e autenticidade tão póprias que é como disse Mulher Solteira: um ato de violência o que este revisor fez. é lamentável que em um país tão plural como o Brasil, ainda exista tanto preconceito linguístico!
estrelinhas coloridas pra ti...
p.s. Saudades superlativas...
O revisor não deveria mudar deliberadamente. Não acredito que ele tenha feito isso sozinho. Deve ser uma opção da editora por usar sempre a forma do pronome de tratamento, mas concordo que você deveria ser consultado. Não entendo muito de revisão editorial, mas na publicidade o cliente tem sempre de assinar o texto revisado, antes da publicação. Nas editoras deveria funcionar assim também.
Adorei o "márquetim". Tomara que a moda pegue.
Abraço,
Pablo
http://cadeorevisor.wordpress.com
Oi Edu!
poxa,adorei o seu texto!a questão do erro/acerto da língua,as variações e tudo o mais é a primeira matéria que vemos na faculdade de letras - ao menos na minha foi assim,hehe.Logo,fico contente de ver esse assunto tão bem tratado por você,que não precisou ter aulas teóricas sobre isso para entender a questão (muita gente saía encucada de sala porque simplesmente achava que português certo é o da gramática e ponto final!bobinhos...rs =P)
E que chato que mudaram os pronomes no teu conto...a(s?) pessoa(s?) que o revisou (aram?) certamente tem um preconceito linguístico bem forte!
bem,termino lembrando os versinhos da música do Teatro Mágico,do qual sempre me lembro quando vejo algo sobre essa questão: "Acredito que errado é aquele que fala correto e não vive o que diz"!
bem,é isso!
bises!
Eduardo, obrigada pela visita ao meu blog. Tu sabes o quanto é difícil escrever e mais ainda quem o queira visitar. Gostei muito do seus escritos e nos assemelhamos no pensar e propagar a palavra. Genuzi
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