domingo, 19 de abril de 2009

Cartola Vermelha (2/2)


Enquanto ela falava, as nuvens se adensavam, o céu escurecia e diminuía a quantidade de pessoas na rua. Eu sabia que deveria ir para casa, mas estava encantado pelas palavras rápidas e fáceis daquela menina. Volantina Violeta... Ela continuava empolgada, falando do circo, da família, de lembranças... Porém, como o céu começava a ser riscado por alguns trovões e já quase não se via sombras na rua, foi me crescendo um medo de sermos pegos pela chuva, desprevenidos e desabrigados. Olhei para o relógio com uma leve impaciência e arrisquei:

— Para onde é que vais agora, mocinha Violeta?

— Preciso levar a cartola.

— É...?

— Agora que achei a cartola, papai vai gostar de tê-la de volta. Ele precisa dela. Para que haja circo.

— Teu pai...

— Um dia, há muito tempo atrás, o circo pegou fogo... Dizem que foi um domador, um que tinha sido mandado embora porque o viram maltratando o elefante, dizem que ele é que tocou fogo em tudo. Eu não sei se existe gente ruim assim, pode ter sido um dragão que estava resfriado e deu um espirro. Mas aí pegou fogo. E foi o fim. Virou fumaça o homem de roupa colorida, só sobrou a cartola. Essa aqui.

Enquanto ela me apontava a velha cartola vermelha com um gesto indiferente, entendi que a menina tinha ficado órfã muito pequena, talvez antes mesmo de nascer. Minha memória, que costuma ter dedos compridos, voou longe e buscou a lembrança de um longínquo grande incêndio num circo à beira do rio, incêndio que consumiu cores e vidas e ocupou em vão as páginas dos jornais. Mas eu ainda não tinha entendido tudo. Ela estava levando a cartola? Para quem? Abri a boca para fazer uma pergunta, mas nesse instante a tempestade começou a desabar em gotas grossas. A menina ficou visivelmente alvoroçada, recuou, olhou para o alto e para os lados, pediu desculpas:

— Preciso ir, preciso ir. Eu não queria molhar a cartola. Ele não vai gostar de ver a cartola molhada. Pode pensar que não cuido das coisas dele. Desculpa. Eu já vou. Vai também, se ficarmos aqui parados acabamos ensopados. Quem sabe a gente se encontre outro dia... Quem sabe no circo?

— Mas se já não há mais circos..?

Ela, porém, não respondeu. Já se afastava, desviando da água que escorria pelas marquises. A noite descera. A escuridão se adensara. Os lampiões, agora acesos, pareciam incapazes de vencer aquele ar de solidão que surgira de repente. Olhei. O rio eu sabia que estava perto, sabia pelo barulho das águas da chuva e da correnteza que se misturavam, mas meus olhos não distinguiam nada. Um ziguezague lépido cortou a minha frente e vi um tênue borrão vermelho sumir no escuro. O lampião da rua nas gotas que caíam criava um piscar frenético. Como reflexos no picadeiro.

Súbito, um novo relâmpago venceu a noite. Avistei pela última vez a menina, já na margem, agora de frente para uma figura alta e delgada que ajustava à cabeça uma certa cartola vermelha com fita de cetim. Tive a impressão de que a figura se dirigia para o meio do rio, caminhando, enquanto a menina observava. Mas já não tinha certeza de nada. Os trovões amainaram e a escuridão voltou. Não a vi mais. O circo, enfim, deixara a cidade.


conto de Eduardo Trindade

9 comentários:

Marina disse...

Que lindo. E triste. Algumas pessoas tomam a vida como lixo e fecham a cara para sempre, enquanto outras se agarram aos poucos resquícios de felicidade e os usam para sorrir. Ah, a sabedoria das crianças...

Faz falta aquela época em que tudo era colorido: os brinquedos, as músicas, os doces. Mas, como diria Chico Buarque, "o que era doce acabou-se".

Mas eu também gosto do agridoce.

Abraço!

Thaís Butterfly εїз disse...

Ahhh ... quando o circo se vai sempre deixa saudade ^^

Marina disse...

Um lindo texto, aquele do relógio. Atualmente, eu me apego mais a coisas vivas, como a orquídea da minha varanda ou a rosa da minha janela. Escrevi um texto sobre a Rosa, uma vez:
http://do-fundo-do-mar.blogspot.com/2008/11/sobre-viver.html

Como você se interessou, vou lhe dizer: a "coisa" de que falei, uma espécie de metáfora, era uma amizade quebrada. Talvez pareça superficial, jogar amizades no lixo, mas eu acho que certas coisas nos fazem mais mal do que bem e é bom deixá-las ir. Não é egoísmo. Os ressentimentos se vão e as lembranças ficam.

Não faço disso um hábito; foi só uma história que não deu certo.

Abraço!

Marta disse...

muitooooooooooooooooooooooo bom, Eduardo!

assim: bonito+triste = boa história que o eduardo imaginou.

imaginou?

eu acreditei!

beijo

Rasura Excessiva disse...

Interessante a maneira como vc descreve e imagina seus contos.
Acredito que cada leitor recria os personagens, cenários e dores vividas conforme as palavras são lidas.

parabéns Eduardo

Azrael disse...

Vi teu link o JPC, vim conferir e gostei muito... virei sempre aqui te ler =)

Ariane Rodrigues disse...

Olá Eduardo, tens te tornado um homem de prosa? Quando publicas um novo poema?

Quero agradecer a presença tão assídua no blog e pelos comentários sempre tão pertinentes.

Continuemos, então os diálogos poéticos.

Abraços.

Lilian Dalledone disse...

Lindo, lindo...

cristinasiqueira disse...

Oi Eduardo,

É tão lindo fazer do circo um
conto no coração!

Beijos,

Cris