quinta-feira, 29 de março de 2012
Dos ponteiros
O relógio da sala bateu: duas horas. Quando era criança, havia na casa dos avós um grande relógio de armário, de pêndulo, e eu gostava de ficar vigiando a aparição pomposa do cuco. Mas não era uma obsessão como a de hoje.
Agora foi a vez do relógio de pulso, aqui do lado da cama. Cinquenta e oito, cinquenta e nove, duas horas. O relógio de pulso sobre o bidê - lá onde nasci chamávamos de bidê a este móvel que, aqui em terras cariocas, chamam de criado-mudo. Mas as palavras, sejam quais forem, não ajudam a madrugada a passar.
Duas da madrugada e ainda há algum ruído na rua, só aqui dentro é que faz silêncio. Não converso. Escrevo para as paredes, queria escrever nas paredes. Não tenho coragem para as coisas mais inofensivas. Quem vai reclamar do quarto rabiscado num universo que é só meu? O instinto que forjei quando criança - guri, para de escrever nas paredes! - ainda é muito forte. Instinto é uma coisa forte.
Eu é que sou fraco. Por isso estou sozinho e nem sequer as paredes me ouvem, por isso minha voz e meus punhos não conseguem dobrar a noite. Não tenho mais pressa. Duas e sete. Sou um maníaco. Melhor teria sido colecionar selos. Volto a lembrar do relógio dos avós. Pensando bem, é ridículo que o tempo seja marcado por um cuco que não envelhece. Ridículo ou cruel.
Passou um caminhão lá fora. Incrível como, aqui do sexto andar, posso acompanhar toda a vida da madrugada. Anteontem foi um casal que resolveu brigar em frente ao prédio. Não sei bem o que levou à briga, o que o rapaz terá dito ou feito, ou deixado de fazer; mas ouvi a discussão, os gritos, e imaginei a mulher indo sozinha nalguma direção e ele parado, as mãos no bolso. Por mais que a moça tenha partido sem o namorado, não saberá o que é solidão como a desse quarto, noite após noite.
Tenho uma parede de pregos nus. Arranquei os quadros, os porta-retratos, não me conformava em ser observado na minha intimidade. Nunca vi um filme de terror em que os retratos mexessem os olhos; os olhos dos retratos só se mexem nas caricaturas dos filmes de terror. Talvez tenha sido por isso que eu arranquei os quadros: medo de minha vida se transformar numa caricatura.
Caminho, abro a geladeira, procuro a garrafa d'água. No fundo, o que eu queria é encontrá-la vazia para assim completar a metáfora desta noite, mas a garrafa está pela metade. Sirvo um copo, bebo. Não bebo no bico da garrafa - outra vez o maldito instinto. O relógio da cozinha marca duas e quinze.
Penso num banho. Dispo-me, o pequeno prazer de largar as roupas pelo chão (aqui não chegou o instinto), ligo o chuveiro. Uma ducha fria, só a água a escorrer. Sempre gostei do barulho da água caindo, é pena que eu nunca mais tenha tomado banho de chuva.
Agarro a toalha, deixo o banheiro. Duas e trinta e três. Trinta e três, trinta e três, trinta e três. Nunca ergui bandeira nem tive pneumonia, eu devia ter tomado mais banhos de chuva.
Não sou o único a não dormir. Ouço barulho, em algum andar, alguém chamou o elevador. Autômato, olho para a porta.
Costumo deixar a porta destrancada, mas nunca me senti tão preso. O anjo exterminador. Não há grades. Não há grades como as que acorrentam a alma. Duas e trinta e oito. Parece que começou a chover. A janela está aberta, sinto um vento suave, cheiro de terra molhada, procuro nuvens. Quero voar.
quinta-feira, 15 de março de 2012
A outra face do fruto
(Poema em preto e branco.)
No princípio era o verbo
e era bom.
Como foi que transformamos
nossa poesia
em pugilismo verbal?
e era bom.
Como foi que transformamos
nossa poesia
em pugilismo verbal?
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Meio-tom

enquanto falavas,
enquanto calavas
e quando extraías da minha boca
as palavras que eu não queria querer.
Matei poemas
(abortos clandestinos)
e neguei canções
(rebentos desconhecidos pelo pai)
mas sei que lias em mim
o que não tinha sido dito.
Agora da tua metralhadora de palavras e pontapés, ácido e chocolate,
machucando quando quer amar,
entregando-se apaixonada quando quer distância,
tu que também não sabias o que querias,
de ti
agora
(mais uma vez)
eu quero a vida inteira.
por Eduardo Trindade
domingo, 4 de dezembro de 2011
Navio-Fantasma
Vaga, vela, remo, onda,Nuestro norte es el sur.
Torres García, artista uruguaio
onde?
O sul é nosso norte.
Bússola quebrada,

maresia,
calmaria.
Este suor salgado de mar,
este mar banhado de dor,
este mundo sem história.
¡No pasarán!
O que foi já é passado.
Vaga, meu coração,
remo, vela,
tempestade,
este tempo
fora do tempo.
Pouso forçado, porto fechado,
a volta ao mundo
por não saber aportar.
Onda, vela,
volta ao meu mundo, coração,
a todo pano.
Eduardo Trindade
sábado, 29 de outubro de 2011
Travessia

como uma travessia de veleiro.
Que o travesseiro seja porto,
princípio e meio.
Mergulhemos na cama
como quem viaja.
Mudos ou loquazes:
qualquer suspiro é um mundo
para quem sonha.
Eduardo Trindade
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Sabiá

“Não é de ti que tenho saudades,
mas do mundo que representas.”
Será dito
“Quem dera não mudasses,
eu permaneceria o mesmo.”
Há quem não admita a mudança
e mude sem perceber.
Está escrito
“Quem espera sempre alcança”,
mas podem tudo as palavras,
não as pessoas.
“Esperarei”,
e espera-se demais
ou espera-se de menos.
Na despedida:
“Eu te amarei para sempre.”
Sempre distante de quem se amou,
distante ainda mais de quem se julga amar,
há quem pense sem dizer
e há quem fale sem pensar.
Lá fora, há de cantar
um sabiá.
Eduardo Trindade
terça-feira, 16 de agosto de 2011
Amar é fazer valer a pena
Chegará talvez um tempo em que parecerá tarde demais, então te buscarei num dicionário de palavras proibidas, num livro de vocábulos nunca ditos, numa biblioteca de sensações inéditas.
Tempo haverá em que não precisaremos de mais tempo para nos entendermos. Desprezaremos os idiomas. Não se tratará de aprender tua língua, apreenderei tua língua nos meus lábios, e tuas mãos estarão nas minhas, teu abraço estará no meu. Confundirei o meu e o teu numa palavra.
Nosso mundo será livre quando libertarmos nossas palavras, nossos corações serão livres quanto liberto também estiver nosso silêncio.
Chegará um tempo em que só nos restará ir além. Só nos restará fazer valer a pena.
Eduardo Trindade
sábado, 30 de julho de 2011
Enquanto lá fora

ou este vento sacudir as bandeiras do varal
e varrer as folhas do nosso jacarandá
deixando sempre outras folhas de outras árvores,
enquanto o sol pintar de reflexos nosso dia
ou esta noite cobrir de saudade nossos olhos,
enquanto caminharem pacientemente as dunas da praia,
sutil ampulheta de vento e tempo e areia
a medir não sei o quê,
enquanto sentir um não-sei-o-quê
(e sei que vou senti-lo)
vou te dar todo o sentido
que não sei se é infinito
pois não sei medi-lo
mas que é o sentido
da pele eriçada, da respiração suspensa, do coração aos pulos.
Do abraço apertado e dos olhos fechados
enquanto a chuva, o vento, o tempo
passam lá fora.
sábado, 16 de julho de 2011
A quem cabe na palma da mão

Bazoguita.
Túti, chegaste há tanto tempo que os detalhes são imprecisos, chegaste bebê, eu era guri e o mundo era um mundo. Chamaram-te Túti, chamamos-te Túti, eu fui o único a insistir no acento em teu nome (paroxítona terminada em i), mas não importava tanto, não assinavas, tua assinatura era teu latido.
Durante uma vida foste nossa cachorrinha. Durante quatro lares foste nossa irmãzinha. Quatro casas, mais as temporadas em Capão da Canoa, quando corrias na praia mas tinhas medo do mar, mais a casa temporária da Glória, em que outra cachorrinha, a Bibi, vivia te importunando (lembras?), mais algumas outras em que fomos visitas, tu que estavas conosco, tu que eras da família.
Tu que cabias na palma da mão, tu te lembras de uma foto em que estás toda encolhidinha dentro de uma pantufa, a cabeça apenas para fora? Não cresceste muito, os da tua raça não crescem muito, continuaste cabendo num colo, num abraço. E não é preciso mais que a palma da mão para um carinho. Quando há carinho, o mundo cabe na palma da mão.
Cresceste com nosso irmão Tiago, lembras como ele era também pequeno, quase como tu? Lembras quando começamos a conversar contigo numa língua inventada, brincadeira de criança? Bazoguita, matuia, tutipum. Olhavas, nem sempre respondias, mas entendias. Era o nosso segredo.
Durante quantos churrascos fomos uma família. Quantas brincadeiras, escadas (sempre tive medo de que as escadas fizessem mal à tua coluna, tu que eras tão frágil). Passeios no Brique, idas ao parque.

Saí de casa e passamos a nos ver menos, nunca pudeste me visitar, mas com que alegria eu te visitava e com que alegria me recebias. Como gostavas do sofá, com que alegria me convidavas para sentar junto contigo, tu que deitavas no sofá com a cabeça sobre a minha perna e me obrigava a te pedir licença sempre que eu precisava me levantar. Uma vez apenas foste te despedir de mim no aeroporto e te expulsaram, o aeroporto parece que não é lugar para cachorros. Ficavas agitada quando me vias arrumar uma mala, temias as despedidas. Às vezes eu saía de madrugada para o aeroporto e te deixava dormindo, despedia-me em silêncio por não querer te acordar, mas como doía. Como dói não poder se despedir.
Então chegou o dia de hoje e foi tua vez de ir embora. Sim, como dói não poder se despedir. Espero que tenhas sido feliz, espero que tenhamos sido uma boa família.
Sejas feliz, é o que dizias a cada um de nós, é o que te dizíamos. Bazoguita.
É o nosso segredo.
Assinar:
Postagens (Atom)