Era uma daquelas tardes de outono em que o céu se tinge de escuro e a noite parece que tem pressa de chegar, disfarçada em nuvens cinzas.
Uma menina descia a rua em direção ao rio. Vinha sozinha, indiferente ao movimento de pessoas ansiosas para chegar em casa, escapar da chuva. A menina usava uma cartola.
Uma cartola vermelha e brilhante, com uma fita também vermelha e brilhante que terminava num elegante laço.
A cartola era ligeiramente grande para a menina. Ou seria a menina ligeiramente pequena para a cartola? Penso que a cartola é que era grande. As meninas, como qualquer pessoa, são do tamanho que são, umas cabem na palma da mão, outras cabem no coração. Esta vai tão leve que poderia andar de balão. Mas vai é caminhando depressa, serelepe, saltando poças imaginárias da água que ainda não começou a cair.
Olhando bem, é como eu desconfiava: a cartola não é tão grande assim, ela se ajusta quase com perfeição à cabeça da menina. Acontece simplesmente que a menina é miúda, miudinha, e a cartola de copa bastante alta cria um curioso contraste. Uma figura que chama a atenção enquanto desce a rua. Um ponto vermelho, ou melhor, um risco vermelho em ziguezague na direção do rio.
Alguém aí já viu isso? Uma guriazinha lépida usando cartola vermelha desviando de poças que não existem?
Ops!... A cartola saiu voando! E lá vai a menina saltitando, agora em linha reta, tentando alcançar a cartola que foge. Estranho isso, parece que não há vento algum e, no entanto, uma imperceptível lufada deve ter arrancado a cartola. Ou terá sido algum movimento mais brusco que a fez escapulir?
Pronto, a menina acabou de recuperar o adereço e agora está ajeitando-o novamente no topo da cabeça. Ao correr atrás da cartola, a menina se aproximou do rio e de mim. Há uma banca de jornal perto da esquina, é onde estou agora, e minha personagem está a poucos passos daqui. Parou, parece que finalmente indecisa sobre o rumo a seguir, ou talvez simplesmente tomando fôlego. De repente, repara em mim, é o que sinto pelos seus olhos sob a aba do chapéu, olhos curiosos postos nos meus. Eu falo:
— Boa tarde, menina.
Apenas os olhos dela, agora mais acesos e mais curiosos, a me responder. Torno a falar:
— Boa tarde, menina. Gostei do teu chapéu...
— Ah... Obrigada.
Ela obviamente não sabe o que dizer. Na verdade, eu também não sei. Começo a sentir remorso por ter interrompido aquele momento lúdico da menina correndo com um chapéu colorido. Agora não tenho como lhe restituir a espontaneidade. Ela, porém, logo supera a timidez e passa a falar num ritmo de quem quer desabafar:
— Foi mamãe quem fez...
— O quê?
— O laço, a fita. Foi mamãe quem fez. E a cartola estava guardada. Era do papai. Estava guardada há muitos anos, sabe, agora eu a achei. Lá em casa tem um grande baú, um baú grande e preto, parece coisa de pirata... Não me deixavam mexer nele, mas agora eu posso mexer. Não é de pirata, é da época do circo...
— Circo?
— É, sim, circo, sabe? Daqueles com um toldo grande todo colorido, listras amarelas, azuis, vermelhas... E palhaços, e mágicos, e moças bonitas que andavam na corda-bamba... E os animais, tantos, elefantes, leões, girafas, unicórnios...
— Unicórnios?
— Sim, unicórnios, e cachorros que jogavam futebol, e macacos que montavam a cavalo... E o homem de cartola vermelha bem no meio do picadeiro, vestido numa roupa bem bonita, anunciando e orquestrando tudo. Tudo. Tudo isso era no tempo em que havia um monte de circos por aí, eles viviam viajando entre uma cidade e outra. E toda a gente vivia no circo, e toda a gente trabalhava no circo. Porque as pessoas todas faziam mágicas, faziam malabarismos, conversavam com os bichos, pregavam peças... Os palhaços, né? Que isso de pregar peças era com eles. Mamãe diz que era muito engraçado, mamãe conta um monte de histórias daquele tempo.
— Ah... Ela gostava, então? Ela devia gostar...
— Ela sente muitas saudades. Era a vida dela. Ela tem nome de flor, mas a vida dela era circo. E eu nasci com nome de circo, mas quando eu nasci o circo deixou de existir. Ela diz que então eu parei de ser circo e passei a ser flor.
— Ah, é?...
— É sim. Margarida é mamãe. E eu, Volantina...
— Volantina...?
— Volantina Violeta, que é para lembrar que eu vim do circo, mas também sou flor. Mas toda minha família veio do circo. É como eu falei, todo mundo era circo. O vovô era palhaço, o melhor palhaço do mundo, precisava ver, até nas fotos em preto e branco mais antigas parece que ele era cheio de cor. A vovó montava a cavalo, fazia acrobacias em cima dos cavalos. E o papai, ah!... O moço todo bonito da roupa brilhante e da cartola vermelha.
— Eu nunca tinha visto cartola assim vermelha, sabe?
— É por causa disso que eu falei, os circos acabaram. Ninguém mais se lembra, quase ninguém. E eu virei só Violeta.
Ler a continuação
6 comentários:
Vou esperar curiosa o final.
delícia!
e tiro-te a cartola :)
Oi Eduardo.
Não conhecia essa faceta de contista. Julgava que era só poesia. Mas depois de ler este conto extraordinário...
Já tentei escrever algo parecido, mas não me sai nada bem. Pode ser que com a continuação ainda consiga.
Continua, são muito bons.
Um abraço
Victor Gil
Vim aqui para agradecê-lo pelo comentário sobre meu poeminha "A Cor do Invisível". Fiquei feliz por ter gostado, mas agora, depois de lido seu conto, me sinto verdadeiramente HONRADA! Obrigada pela visita e mil vezes obrigada por apresentar-me à essa bela menininha! Aguardo ansiosa a segunda parte do conto, embora a primeira seja tão boa que nem sei se há necessidade de uma segunda! XD Volte sempre que possível! Parabéns pelo blog!
hummmmm... adoro esse gostinho de quero mais!
mas por enquanto, já está tão bom que poderia terminar por aqui
rs
abraço
"(...)Escritores se encontram muitos na Internet, mas são poucos os que tem criatividade para dar às ideias uma forma original como a tua." Faço minhas as suas palavras! XD
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