Quando acordei, estavas ao meu lado e não te reconheci. Deslembrado eu do tempo em que te levar para a cama era uma arriscada e doce aventura. Levantei-me, escovei os dentes, olhei-me no espelho e havia outro rosto a me mirar. Outro, não eu, a quem devia pertencer a mulher que se estendia na cama, adormecida. Outro que por certo te havia jurado amor eterno. Houve um tempo em que me apaixonei pelo teu jeito de dormir; pelo jeito com que sorrias, movimentando de leve os lábios num gesto tão natural, mesmo desacordada. Mas depois fui eu que me entreguei a um sono longo, não sei quanto tempo passei longe de tudo, longe de mim. Quando acordei, ao teu lado, estava tão longe de ti. Envergonhado, vesti-me. Acordaste e eu não soube o que dizer, tu me chamaste de volta para a cama alegando ser domingo. Então tornei a deitar, mas eu estava ausente. Fiquei ouvindo a arruaça que os pássaros faziam lá fora enquanto te rias, que tolo eu era, onde andava com a cabeça, acordar em pleno domingo e me vestir para o trabalho, depois tu me chamares para a cama e eu me deitar com a camisa imaculada, amassando os vincos tão bem passados por tuas mãos carinhosas. Miraste-me com leve repreensão, eu fechei os olhos. Tu me desabotoaste a camisa, procurando meu peito com a mão, que mão aquela, de toque tão estranho ao meu tato, quem eras, como podias me querer assim, aquilo era querer? E o amor o que era, amor por quem? Ao lado da cama havia um porta-retratos, dois rostos felizes colados um ao outro contemplavam a eternidade. Fitei-os como quem tenta entender, depois tive vergonha por devassar a intimidade de anos daqueles rostos, intimidade que não me pertencia, terá alguma vez me pertencido? Ao meu lado, na cama, afastaste o lençol e eu pensei em evitar teu corpo despudoradamente só de camisola, mas não reparaste e buscaste um abraço que eu não soube retribuir, envolveste-me e sussurraste — tu te lembras do nosso primeiro beijo? Eu não tive coragem de te encarar, não saberia confessar para ti, uma estranha, a minha desmemória, o meu afastamento, a minha desconfiança, a minha ignorância. Silenciei e encarei a porta do quarto, a moldura de madeira por onde entrou correndo uma menina, uma menina incrivelmente parecida com a moça que, nunca esquecerei, eu havia jurado amar eternamente. A menina tinha os olhos da moça da foto e veio gritando até nós — papai, mamãe! Então eu chorei baixinho e soube como nunca que, pela primeira vez, nem tu nem ninguém poderia enxugar o meu pranto.
texto e fotografia por Edurado Trindade
5 comentários:
é tão estranha essa capacidade que temos de nos perder no tempo, nos perder de nós mesmo....
Foi bom, "descobrir" a sua escrita.
Gostei muito.
Como disse Raquel, é estranho o modo como nos perdemos no tempo, nos perdemos de nós, e nos perdemos do que pensávamos ser amor.
Outro texto fabuloso e forte :)
Edu,
Dá uma olhadinha no meu último post, é pra você!
Abraço
Pensei mil coisas qdo li este post. Adorei!
Pensei sobre a fragilidade, os altos e baixos, encontros e desencontros dentro da mesma relação. Somos todos vulneráveis em se tratando de sentimentos.
A cena da moldura de madeira me fez pensar, também, sobre filhos, que às vezes distanciam pais, às vezes aproximam..
A simplicidade,beleza e o ritmo das palavras desse texto me remeteram a diversas situações, fazendo escorrer uma lágrima dos meus olhos, que há tanto andavam secos.
Obrigada!
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