“Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?”
José Saramago (1922-2010), A Maior Flor do Mundo
Criou uma mulher que via por dentro da gente, ela olhou-o e disse, És puro e bom. Ele replicou, Não posso ser puro porque não há quem seja puro, e bom, há quem não concorde, pois polemizo. Voltou a mulher, Gostaria que houvesse mais polemizadores, ou mais desassossegadores, como dizes. Porém, sendo eu mesmo um desassossegado, não tenho descanso, Por que escreves, então, Tu o sabes quando me vês por dentro, assim como sabes que há coisas que não se explicam, apenas se sentem e se fazem. Ele se despediu com um olhar e voltou a mergulhar nos livros da biblioteca, mas a mulher insistiu, Ensina-me a escrever, Eu te criei para que visses, não para que escrevesses, Mas também eu quero desassossegar, Criei-te humana, portanto devias querer antes conforto que desassossego, És mais humano que eu, De nós dois, quem é o autor e quem a personagem, O criador é filho da criatura. A mulher então levou-o para ver o mar, o mar por onde tinham passado as caravelas, e insistiu, Sei que gostas do mar, Gosto de tudo que é caminho, principalmente os que não estão prontos, Por isso gostas do mar, Sim, gosto, E quando te fores por estes caminhos, quem vai escrever a tua elegia, ensina-me a escrever para que eu a escreva, Não gosto de elegias, Uma ode, então, Mas por que iria eu querer uma ode, por que iria querer sossego, Quem sabe o que podemos querer amanhã, não fosse o futuro o princípio do desassossego, Argumentas bem, Aprendi contigo, E se eu me recusar a que tu escrevas, Então te darei um barco, Por que um barco, Porque precisas procurar a ilha, tu bem o sabes, Que ilha, A ilha desconhecida, a ilha que terás e terei como ode, sonho e, enfim, sossego.
Escrito em lembrança de um dos escritores que mais me marcou. Ficou o estilo que lhe era peculiar. Muitos terão entendido as minhas referências neste pequeno ensaio; para quem quiser procurá-las, estão principalmente em Memorial do Convento e O Conto da Ilha Desconhecida.
Eduardo Trindade
5 comentários:
Saramago então, tomou seu barco e nos deixou seu desa-sossego.
Edu, uma maravilha teu escrito! Saramago me trouxe uma parte grande de quem sou.
beijos
Lindo, Eduardo! Maravilha mesmo!
Pois que ele vá em paz.
Beijo.
Magna
as intermitências da morte para mim é a obra mais marcante dele.
belíssima homenagem tua!
abraço.
Uma homenagem à altura de Saramago. O homem partiu, mas as histórias estão aí para a eternidade "Era uma vez..."...
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