sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Das cartas na gaveta

(como n'O Livro do Desassossego)

O perigo da saudade é passar a gostar não de ti, mas da imagem que minha lembrança turva e cambiante faz de ti. É por isso que tento não chorar nas despedidas: para que meus olhos, límpidos, guardem uma visão mais pura do nosso amor. Mas choro, sempre; a memória é seletiva; e sigo com os olhos cativos de esperança. Quem sabe virás, com lágrimas mais puras que as minhas, construir comigo um espaço para novos sorrisos? O bom da saudade é que só ela pode dar gosto ao reencontro.

Eduardo Trindade

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Amarelinha

Menino,
pés descalços
na calçada da rua.

Pé ante pé,
o eco
ritmado.

Brinca de criança,
amarelinha
nas pedras da rua.

Pedra, piso,
quantos séculos
te pisaram?

Onde o menino
que corria
na calçada deserta?

Seco o espelho
da água da chuva,
poeira dos séculos.
versos e imagem por Eduardo Trindade

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Arena

Toureamos em noite escura,
ensandecidos,
amálgama de carne, pele, suor,
pulso. Toureador
na areia, nuvens do deserto.
O sangue que jorra
é meu, é teu,
quente e doce,
amargo como nunca,
álacre nunca mais.

O sangue que jorra só pode ser de ambos,
amálgama,
nenhum de nós é uma ilha,
mas a areia que nos cobre
(a noite não protege),
lances de capa e espada...
Por que a lâmina,
já não bastam tuas unhas?

Tingida de sangue a areia,
ondas de vida,
de escuro fluido vital
(a noite não distingue, meu, teu?),
ondas e mariscos
entre os dedos dos pés
dilacerados por noites em claro
toureando em vão.
Por que lâminas,
por que lanças,
lanças-te às ondas
e me lanço à espuma
rítmica, insistente, infinita.
Abandonada a capa
(nunca protegeu),
abandono-me a tourear
tua alma de sangue
(perdida?),
minha alma,
jogo de espelhos.



Prezados leitores:

Este blogue foi selecionado como finalista do concurso TopBlog na categoria Cultura! Confesso que fiquei surpreso, não esperava tanto. Agradeço a todo mundo que passou por aqui e dedicou um minuto a votar. Bem... Agora começa tudo de novo: vamos para o segundo turno (bem propício este discurso, não?), preciso novamente do voto de todos vocês, inclusive de quem já participou. Então, que tal, vamos lá? Clicando no selo ao lado, é rápido e fácil!


Eduardo Trindade

domingo, 3 de outubro de 2010

E nós, o que estamos fazendo?

Considero-me uma pessoa discreta, não sou de grandes discursos ou exaltações. Mas aprecio certos protestos silenciosos quando vejo que há necessidade deles. Por isso é que, hoje cedo, ao sair para votar, levei comigo a bandeira brasileira e, principalmente, coloquei meu nariz vermelho de palhaço.
Em outras palavras: é claro que amo esta pátria que me viu nascer, mas talvez justamente por isso não posso deixar de me manifestar contra atitudes que considero erradas. Sem dúvida, tenho muito mais orgulho da situação econômica e política do Brasil hoje do que quando comecei a entender e a repara nisto. Mas é claro, também, que ainda há tanto a fazer, tanto...
A culpa é dos políticos, dizem. Eu até concordo. Vejo muitos deles que parecem desonestos ou francamente incompetentes, quando não as duas coisas. Mas eu me nego a jogar toda a culpa neles e lavar as mãos. Vivemos numa democracia, somos todos responsáveis. Ou nos esquecemos do próprio significado da palavra política? Somos todos políticos, nenhum homem é uma ilha. Que exemplo estamos dando em casa, o que estamos ensinando nas escolas e nas ruas? Com que cara alguém que oferece propina ao guarda pode reclamar de corrupção no Congresso? Uma pessoa que embolsa um troco dado por engano tem direito de se indignar diante de uma obra superfaturada? Alguém que fura a fila no mercado pode acusar outro que compra votos para se eleger? Quem joga papel de bala no meio da rua terá menos culpa do que quem desmata a Amazônia? Talvez não.
A sociedade é a soma de todos nós e de cada um dos nossos atos. E os políticos que elegemos são, sem dúvida, reflexo desta sociedade.
Sim, eu acho difícil votar, escolher pessoas em quem confio e que merecem me representar. Mas quem disse que deveria ser fácil? Por isso mesmo, não concordo com o voto nulo: este, que querem fazer parecer um ato de rebeldia, para mim soa mais como uma injustificável preguiça. Por mais batida que seja a frase, o voto é nossa arma. Vou além: o voto é a primeira de nossas armas. As outras, com ou sem nariz de palhaço, estão ao nosso alcance em casa, na sala de aula, no escritório, na rua. Como? Buscando a honestidade nos pequenos atos. Olhando para o espelho de cara limpa. Esta corrente, sim, eu passo adiante.

Eduardo Trindade

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Azenha

As pás do moinho movidas pela água,
O ranger infinito anunciando
O passar do tempo que nunca passa.
Passam as águas?
As pás do moinho rangem sem parar.

O trigo que vem da terra,
A farinha que vem da azenha,
O moleiro a triturar,
O passado que nunca passa.

Uma mulher que foi embora,
Um filho que se perdeu,
Um moleiro solitário
Com farinha entre os dedos,
As pás do moinho rangem sem parar.



por Eduardo Trindade